quinta-feira, 12 de abril de 2012

Imensidão desContida


Imagem do site: http://www.placesdonkey.com/

Não era o cheiro de chuva, nem o toque do vento, nem o estalo dos gravetos flamejantes, era a visão disso tudo. A visão do céu azul, rosa avermelhado, violeta insinuante que transbordava na tela. Ela voltou a casa. Foram as cores que a conduziram. Quando partiu, ainda menina, não sabia a dimensão daquele lugar. Muito menos sabia da força das águas. Um dia, chamou aquilo tudo de seu jardim. E com as mãos sujas de terra, conversou com os seus. Mas hoje não. Do outro lado da vida, entre carros paralisados e sinfonias ensurdecidas, o mundo era desértico. As trocas empreendidas, quase todas, de uma superficialidade aterradora. Poucas foram as almas que davam cor a paisagem da cidade. Já esteve cansada de compartilhar a solidão mesquinha dos vazios perambulantes. Poucos se atrevem a conhecer a si mesmo. Ela que vivera na carne os medos, até os menos sutis, demorou para aceitar isso. A covardia não fora ensinada pelos grilos do seu jardim. Enfrentou a impetuosidade da ousadia desmedida e viu as máscaras caírem. As suas. O passado recente perdera o gosto amargo. E o passado longínquo parou de ofuscar o presente. Não era saudosista. Só deixara de fugir. A imagem da imensidão solitária daquele lugar que um dia chamara de seu jardim não saía de seus olhos. As cores, os cheiros, os ruídos, os gostos, os silêncios deixaram de ser lugar. Já faz um tempo que ela havia se transformado. Como a tela de cinema, ela transpira vida. Hoje, é ela que é aquela imensidão solitária.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Quando Lucas não via Nós

Imagem de Lúcio Caldeia

Vitória era escritora. E durante um bom tempo fora também autora de Poemetos Neoconcretos Eróticos. Agora ela não escrevia mais nada ou quase nada. Escrevia livros, assinava colunas, mas não dizia realmente nada. Como se de um dia para o outro, tivesse perdido o gosto pela escrita. Antes, quando gostava do que escrevia, tinha um deslumbramento especial pela forma. Adorava desenhar as letras e ouvir os sons se desprenderem do papel. Cada palavra, cada ponto, cada espaço, cada silêncio, cada vazio, cada imensidão de significados transbordava de sua alma para o papel. E do papel para o leitor. Seja quem ele fosse, ficava inundado com a beleza plástica. E extasiado com a profundidade poética. Era afeto em cada gesto, era gosto em cada ponto. Mas um dia, Vitória deixou de transbordar a sua alma no papel. E deixou de inundar o leitor com a sua beleza. Agora ela os entupia de frases e parágrafos até transformar o fino paladar numa grosseira falsificação de sabores. Mas ela continuava escrevendo e continuava vendendo. Talvez a grande maioria dos leitores não perceba a sutileza de gostos. Ou talvez, o seu nome já consagrado ofusque o fato da sua prosa não ser mais poesia. Seja como for, Vitória, já não é mais a mesma. Lucas demorou a reconhecer a cruel verdade. Vitória já não escrevia com a paixão e lucidez de sempre. Doeu. Doeu reconhecer. Doeu tanto ou mais do que já havia doído a separação do casal. Vitória, autora. Lucas, muso.
Ele se sentia culpado. E se durante a separação, ela tivesse deixado na casa, além das fotos, das músicas, das plantas, dos planos, dos sonhos, a sua força criadora? Bem verdade, ele nunca quis que Vitória fosse embora. Assim, como nunca quis, que ela ficasse com nada daquilo que um dia fora deles. Durante a separação, ele trabalhou como nunca. E, portanto, não houve maneira de fazer tempo para a partilha. Acabou herdando sem querer querendo a maior parte dos objetos que o casal juntara nos dez anos que estiveram juntos. Herdara sem querer querendo as plantas, os cd`s, os álbuns de foto, os cadernos de desenho, os de poesia, as planilhas de Excel com as contas do mês, os rabiscos na parede da sala, os cartões postais das viagens, a caixinha onde guardavam os seus desejos postos em papel e que só poderiam ser lidos no dia que o casal fizesse bodas. Ele se sentia culpado.
E se na sua covardia para dizer adeus tivesse amputado de Vitória o que ela era dela, só dela? Isso parecia absurdo. Ninguém amputa de ninguém a inspiração. Ou amputa? Na dor da separação, Lucas havia machucado a alma de Vitória. Seria essa a explicação para os textos da moça não serem mais os mesmos?
Lucas pegou o jornal e releu a coluna de Vitória daquele dia. E depois releu o primeiro capítulo do último livro publicado. E depois releu o último capítulo do primeiro livro publicado. E foi lendo e relendo trechos, parágrafos, capítulos e quando já estava prestes a abrir a caixa onde guardava os bilhetes que ela escrevera para ele no tempo que eram um casal apaixonado, ele começou a ter novas dúvidas. E se, na verdade, era ele que não soubesse mais enxergar beleza? E se, na verdade, era ele que estivesse com as papilas incapazes de sentir o sabor das palavras? E se, na verdade, ele estivesse com saudades? Achar que os textos de Vitória não eram mais como antes poderia ser uma desculpa para estar na presença da moça. Até pouco tempo atrás, a moça não era moça, era a mulher de sua vida. Então, estaria ele se contentando com a presença do antigo amor mesmo que essa presença fosse somente em sua imaginação? Mesmo que essa presença fosse somente e tão somente palavras? Já não sabia de mais nada. Entorpeceu-se de dúvidas. E assim meio entorpecido, meio ausente, fora de si, deitou na cama e começou a chorar. Chorou as mágoas, os enganos, as dores, os medos, as delícias, as alegrias, a saudade, e tudo o mais que poderia chorar. Chorou até depois de secar as lágrimas. Chorou choro sem água. E varou a noite de tanto chorar. Dormiu e chorou em sono. E chorou nos sonhos. Chorou por todos os anos que não havia chorado. Quando acordou, estava mais cansado do que quando havia deitado. Ao primeiro raio de luz, Lucas percebera que já não era o mesmo. Abriu os olhos e descobriu tudo. Não era Vitória. Era ele. Era a alma dele que havia sido amputada. Anos atrás. Muito antes de conhecê-la. 

Desfiz os nós