quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Com Fusão


Eu gosto de voz, de pele, 
de toque, de sopro.

Eu gosto de carne, de sangue, de alma.

Eu gosto de ouvir a vida no suspirar da alma bonita. 



...

Queria andar pelas ruas,
beirar a areia da praia e ver você.
E queria que no cruzar dos nossos olhos nos enxergássemos para além disso tudo.
Queria que nos enxergássemos para além do óbvio massante que é ver.
Eu queria sair para passear.

E queria me deitar com você.
Dormir o cansaço da dor que nos castigou.
Queria acordar renovada.
Com o doce gosto de quero mais na boca.
Com o desejo de viver pulsando em cada veia do meu corpo.
Uma pena você não estar por essas bandas de cá da nossa língua!

...

Acordo e penso em você.
Acordo e está tudo misturado.
Quero achar o seu corpo na minha cama.
Eu me mexo de um lado para o outro.
Não é hora de levantar.
Sentir o peso das suas pernas por cima das minhas.
Sentir o calor do teu corpo envolto ao meu.

Quero acordar com beijos.
E quero passar a manhã de domingo com carícias.
Quero rir desse jeito envergonhado.
Quero soprar a nuca.
Beijar o pescoço.
Tocar os seus lábios com os meus.

Quero dar bom dia.
E me esconder entre seus braços.
E me achar nos seus olhos.
Eu só consigo pensar em como você é doce.

sábado, 26 de novembro de 2011

Mordendo a Cereja


Aos meus amigos, meus amores

É muito bom alcançar um patamar de maturidade onde expor fraquezas não é um levante revolucionário para mascarar uma resposta infantil as divergências corriqueiras da vida.
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É muito bom alcançar um patamar de maturidade onde expor fraquezas não é um grito desesperado por sobrevivência e nem é artifício de chantagem para aplacar a tirania da solidão imposta.
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É muito bom alcançar um patamar de maturidade onde expor fraquezas não procura colo, abraços, beijos, culpados, carrascos, rompimentos, discussões.
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É muito bom alcançar um patamar de maturidade onde expor fraquezas não é o vomitar do emaranhado complexo e muitas vezes doloroso do envolvimento humano.
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É muito bom alcançar um patamar de maturidade onde expor fraquezas é simplesmente sinônimo de tomada de consciência ou até mesmo de superação.


Nada melhor do que a constatação de que se está em um determinado trecho da trajetória do herói da maior aventura de todas, a nossa.
 
Nada de fato é melhor mesmo do que morder a cereja vermelha da vida. 

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A Caixinha que você fez para mim


Texto criado durante a Oficina "Histórias Reais”, realizada pelo Sesc e ministrada por Janaína Leite. A Caixinha, musa inspiradora, pertence a Thaís Vaz. 


Lembro do dia que nos encontramos pela primeira vez. Não me refiro ao dia que nos conhecemos. Falo de quando nos conectamos. Era primavera e o pátio da faculdade estava lindo. O sol, as flores, o banco onde nos sentamos, tudo está aqui dentro desta caixa. Você pegou o folder do seminário e transformou numa espécie de porta jóias para que eu guardasse os presentes mais delicados que você ainda viria a me dar. Eu tenho a caixa comigo. E não me importo dela estar vazia. Guardei o instante aqui dentro; o seu sorriso, o brilho dos seus olhos, o meu contentamento, a nossa alegria. Está tudo aqui.


Desfiz os Nós


Era a primeira vez que ele escrevia um bilhete.
Vitória que adorava escrever bilhetes. 
Lucas, muso. Vitória, autora de Poemetos Neoconcretos Eróticos. 
Ele nunca confessou, mas adorava encontrar no bolso da calça, do casaco, da mochila, um papelzinho colorido com uma pitada de cheiro para mais tarde.
Mas também tinha medo.
Medo, que por um descuido, um bilhete que era seu, só seu, fosse parar na alma de um desconhecido. Ele tinha ciúmes.
Lembrar dos bilhetes, lembrar do medo, lembrar de Vitória.
Pegou um papel colorido na gaveta, uma caneta robusta e escreveu recado sincero:
  
Tirei a roupa. Despi-me completamente.
Desfiz os nós das amarras. Pulei.
O vento toca meu rosto, está quase suave.
A vida, neste instante, me faz um carinho bom
como se fosse meu primeiro grande amor.
Pude me dar conta que devo muito a você.
Não se preocupe, eu guardo bem as palavras.

Aproveite bastante o seu aniversário!


Um grande beijo,


L.

Agora teria que descobrir em que bolso colocar o papel.
Vitória não pendura mais seu casaco no hall da casa.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Laurinha, Meu Destino!



–Alô, José?
–Sim. É ele.
–Oi, rapaz, aqui é João!
–João, meu amigo, quanto tempo! O que conta de novo?
–Por aqui, sem grandes novidades. Quer dizer, meu aniversário tá chegando.
–Opa, notícia boa! E vamos comemorar quando?
–Estou marcando um choppinho na sexta com o pessoal da metralha lá no Arco do Teles. Assim, o povo sai do escritório e vai pro abraço!
–Rapaz, que coisa boa! Mas acho que não vou, não.
–Mas o que quê há? Vai me dizer que Laurinha agora deu pra controlar os seus chopps?!
–Imagina! João, eu tenho a mulher que todo homem pediu a Deus. Não me regula em nada. Eu é que tenho uma entrevista de trabalho do outro lado da cidade. Sexta, eu nem passo no escritório.
–Eu não sabia que você estava procurando emprego.
–Eu não estou. Acontece que aquela agência vive me mandando anúncio de vagas com o meu perfil.
– José, porque você não avisou que já arranjou emprego, homem?
–Pois é! Eu ia avisar. Mas aí Laurinha...
–Você não está satisfeito lá no escritório? Não me falou nada. Eu podia ajudar. A firma que eu estou agora é excelente.
–Pois é, mas eu estou satisfeito. O pessoal é bacana. O salário é bom! O serviço é tranqüilo. É que Laurinha tem essa mania...
–Que mania?
–Ela diz que nós devemos sempre estar de portas abertas para as oportunidades. O destino não trabalha sozinho.
–Sentido faz.
–Já é a terceira entrevista de emprego que me chamam do lado de lá da cidade. Tudo empresa grande. Dessa vez, vou fazer entrevista numa multinacional.
–Não me diga?
–Pois é! E digo mais, tenho um amigo que trabalha numa construtora e já me falou que eles estão com mais de cinco empreendimentos praquelas bandas. É só eu ligar que consigo um apartamento com um belo desconto. Depois disso tudo, eu pensei: a mulher tem razão, destino!
–Rapaz, por tudo o que você está falando, acho que é coisa de destino mesmo. Olha que eu não sou de acreditar nessas coisas, não. Mas e o chefe? Vai faltar na sexta?
– E não é que o Geraldo me deu folga?! Acho que peguei o homem de bom humor.
–Deve ter sido. Porque ele não costuma afrouxar com ninguém. Quer dizer, no meu tempo, só afrouxava com quem usava saia e rebolava, né?
–Acho que sim.
–Conversa está muito boa, mas eu tenho que desligar. Depois você me conta como foi lá. Boa sorte.
–Obrigada. Olha, vou avisar Laurinha. Se ela puder, tenho certeza que irá adorar comemorar o seu aniversário.
–Maravilha!
–Abraço, meu amigo.
–Abraço.

Na tão esperada sexta-feira, enquanto Laurinha arruma sua bolsa para sair para trabalhar, José, confortavelmente sentado a mesa da cozinha, lê o jornal. O marido diz:

–Amor, não esquece que hoje tem aniversário do João.
–Eu sei. Você já falou umas três vezes!
–Você vai?
–Vou sim. Faz tempo que não vejo o povo. Naquele churrasco de fim de ano, eu estava visitando minha mãe...
–Maravilha! Manda um abraço pros rapazes. E um beijo nas moças.
–Mando os abraços. Os beijos, não vou mandar não.
–Mulher ciumenta!
–Eu cuido do que é meu. Boa entrevista!
–Vem cá, eu preciso de um beijinho!
–Para! Assim eu me atraso. Você sabe como é o pessoal do banco...
–Até mais.
–Até. Boa sorte!

José sai de casa com bastante antecedência. A distância entre seu atual apartamento e a empresa que fará entrevista é grande e o trânsito costuma ser bem intenso nas tardes de sexta-feira. Ele chega com uma boa folga. Aproveita para conhecer as instalações e conversar um pouco com o pessoal que trabalha lá. Vinte minutos depois do horário combinado, é chamado para entrar na sala. Sai em menos de dez, sentindo não ter causado boa impressão. Segue rumo ao ponto de ônibus e pega uma van em direção a cidade. Com sorte, ainda consegue tomar um choppinho com o pessoal.
Mas a tal van é dessas ilegais. Vendo um congestionamento causado por uma blitz, o motorista não quer nem saber, sobe no meio fio e atravessa para a outra pista quase causando um acidente. Os passageiros ficam nervosos e começam a resmungar. Umas duas mulheres começam a ensaiar um barraco, quando o filhote de Nem berra de volta:

–Todo mundo de bico calado nessa porra! Vai sobrar chumbo.

            Nesse momento da história, José começa a rezar como nunca rezou antes na vida. Ele só pensa na mulher. Laurinha, minha paixão! Não posso morrer longe de seus braços. O filhote de Nem corre como louco, metendo a van em tudo quanto é espaço, se distanciando cada vez mais da blitz e da direção do centro da cidade. Numa certa altura, ele para, olha pra trás e diz:

–Cambada, adiantando a passagem.

Uma senhora gorda e pouco prudente pergunta:

–Eu vou ficar no centro. O senhor tá indo pro centro?

Docilmente o motorista responde:

–A senhora vai adiantar a passagem agora e vai descer logo ali naquela vala ­– apontando para um canal sujo – se encher mais o meu saco.

Todos os passageiros começam a contar suas moedas e pagam o rapazinho que está em pé. Sem perder muito tempo, ele abre a porta da van e todo mundo desce ali mesmo num matagal no meio do nada.
Aproximadamente 12 horas depois desse episódio traumático da van, José chora ao lado do seu mais novo amigo, Severino:

–Rapaz, que história essa sua, hein!
–Pois é!
–Fica assim, não! O povo sempre diz: o que não tem remédio, remediado está! Homem de Deus, chora não! E agora?
–Não sei. Meu Deus! Minha mulher!
–Vou fazer o seguinte: vou pegar um banquinho, você senta nele. Aí, eu termino de limpar a calçada, fecho o bar e te levo pra casa.

Depois de lavar a calçada e terminar de passar pano no balcão, Severino desce as portas de seu estabelecimento. Carregando José, vai ouvindo o relato da noite do seu cliente mais chorão da semana:

–Depois da gente andar quase uns trinta minutos, conseguimos chegar num ponto de ônibus. Só passava condução muito cheia. Os motoristas nem paravam.
–E aí, como que você saiu de lá?
–Esperei, esperei, esperei, até que passou um ônibus não tão cheio. Quase três horas em pé pra chegar no centro.
–Jesus!
–Aí, eu andei, andei até o local e não tinha mais ninguém lá. Vazio, vazio, vazio.
–Cuidado!

José quase tropeça numa caixa largada no meio da rua. Severino o segura firme para ele não cair. Nessa hora, José se emociona todo. E começa a soluçar novamente. Severino fica sem entender nada.

–Chora, não! Começa de novo, não!
–Severino?
–Diga.
–É que eu tô emocionaaaaaado. Você é meu amigo. Você é meu amigo de verdade. Está aqui me carregando. O João é um canalha.
–Mas afinal, homem, termina essa história.

José anda até o pé de uma escadaria. Eles estão no Rio Comprido e já são quase cinco horas da manhã. Severino senta ao seu lado.

–Eu vi um garçom limpando uma mesa bem grande. Aí, eu fui falar com ele. Perguntei do pessoal e o rapaz disse que o grupo tinha acabado de pagar a conta. A maior parte tinha ido embora e a pequena parte tinha ido para a Boate dos prazeres.
–Boate dos prazeres, hein?! Essa num conheço.
–Aí, eu pensei: João, safado como ele, deve ta lá na tal Boate. Laurinha, me mata se souber.
–Você foi?
–O João era meu amigo desde o tempo do colégio. Nós estudamos no colégio de padres lá de Niterói.
–Ave, Maria!
–Pois é! Eu fui. Tava preocupado de alguém me ver e contar pra minha mulher.
–Mas se ela foi no bar, podia ter ido lá.
–Laurinha, nunca. Ela é mulher direita.
–Ué. Agora num entendi. Tinha alguém lá?
–Tinha, tinha sim. Uns cinco malandros da velha turma, bebendo, babando nas moças.
–Ô, delícia! Gostosas, hein?!
–Deixa eu contar a história, Severino.
–Vou interromper mais não.
–O João não tava lá. Eu peguei uma cerveja e comecei a beber com o povo. Tava precisando.
–Um pouco, mas agora, já bebeu muito, né? Só lá no Bar, oito cachaçinhas.
–Severino, você é meu amigo ou vai ficar regulando o quanto que eu bebo?
–Calma! Continua a história.
–Depois de um tempinho, eu saí da Boate e fui andando em direção ao ponto de ônibus. Tava demorando para vir uma condução que passasse perto da minha casa. Finalmente, passou um ônibus que me deixava a cinco quadras de casa. Peguei.

Nessa hora do relato, os olhos de José se enchem de água. Ele começa a chorar novamente compulsivamente. Severino que é um homem de negócios, tem hora para acordar. Não pode passar o restinho de noite na rua tendo que abrir o bar em poucas horas. Mas também não quer deixar o novo amigo largado na sarjeta. Ele propõe um acerto:

–José, escute-me bem, homem. Ou você termina logo essa história sem nem mais um pio de choro ou eu vou ter que te deixar aqui. Aí, você vai ter que dormir na rua. Num posso levar pra casa um homem desse tamanho chorando. Minha mulher e meus filhos vão levar um baita de um susto se forem acordados no meio da noite com esse chororô. O que você me diz?
–Aceito.
–Então, termina de contar.
–Andando pra casa, passei em frente ao prédio de João. Vi que a luz do apartamento tava acesa. Atravessei a rua, comprei umas latinhas de cerveja no posto de gasolina. Eu já tava meio altinho. Achei que não teria problema fazer uma surpresa. Atravessei novamente a rua e quando ia apertar o interfone, escuto chamarem por meu nome:

–José?
–João?
–Ué? Achei que você tivesse em casa. Vi a luz acesa.
–Eu tava. Estou voltando da sua casa.
–Da minha casa?
–É.
–Quê que você foi fazer lá?
–Falar com você.
–Porque? Meu Deus! Aconteceu alguma coisa com a Laurinha? Ela tá bem?
–Calma. É sobre a Laurinha sim. Mas não se preocupe, ela está bem.
–Cadê a minha mulher?
–Ela está aí em cima.
–No seu apartamento?
–É.
–Vocês tão dando uma festinha? Você ia me chamar?
–Não.
–Não?
–José, Laurinha agora vai morar comigo.
–Com você?
–É.
–Como assim? Do que você tá falando?
–Eu fui até sua casa pra contar. Amigo, não sei como te explicar.
–Rapaz, eu to começando a achar a piada boba demais.
–Não é piada. É destino.
–Destino?
–Eu e laurinha há muito tempo sentimos uma coisa muito forte um pelo outro. Mas não sabíamos que era recíproco. E hoje a noite, nós descobrimos. Foi o destino que nos uniu.
–Como é que é? O destino uniu vocês?
–Você teve uma entrevista de trabalho do outro lado da cidade. Ela foi liberada cedo do banco. O pessoal da confeitaria se enrolou, eu tive que buscar o bolo. Isso foi bem na hora que laurinha saía do banco. Entendeu? O universo conspirou para que nós ficássemos sozinhos. Esse encontro foi o melhor presente de aniversário que eu poderia ganhar.
–Ou isso é uma piada de mal gosto ou...
–Não é piada. Nós conversamos.
–E aí já resolveram ficar juntos depois de cinco minutos de conversa?
–Nós passamos a noite toda conversando. Eu não fui comemorar no bar, disse pros rapazes que não tava me sentindo bem.
–Eu não acredito. Você é meu amigo de infância. 
–Eu sei. Mas o que posso dizer?

Severino está que não se agüenta. Quer saber se o amigo meteu a mão na cara do safado que pegou sua mulher. Mas tem medo de ouvir a resposta e ter que agüentar mais cinco minutos de choro ininterrupto. Mas também pensa que se o cabra for frouxo do jeito que está parecendo ser, num vai passar uma noite na sua casa. Ele vai acabar querendo passar a semana inteira chorando o chifre. Então, sem dó interrompe o relato:

–Rapaz, achei que você fosse homem sério.
–Como assim?
–Não acredito numa palavra. História mais sem pé, nem cabeça.
–É verdade.
–É, não. Seu amigo desde os tempos de moleque roubou sua mulher numa noite de conversa? E disse que era obra do destino? E você acreditou?
–Severino, fala assim, não.
–Num levo frouxo pra casa que isso não é bom exemplo pros meus filhos, não.
–Severino?!
–Se quiser, aparece mais tarde no bar pra gente tomar umas cachaçinhas.

Foi assim que, em menos de uma semana, o destino mostrou a José o que era capaz de fazer. Naquela noite, ele que passara a semana sonhando acordado a nova vida, iria dormir na sarjeta. Isso se o chifre não atrapalhasse o seu sono. 

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Amor ou o Podre

Já havia alguns anos que Roberto gostaria de receber notícias de seu filho. Não era uma idéia recorrente. E nas raras vezes que se permitiu encontrar com o passado se deparara com a distância descomunal que existia. Era quase como lembrar de um ente falecido. Um sorriso, um olhar, um breu escuro, uma doce e delicada dor de curto pulsar. Se cobrasse da memória mais imagens ou mais gestos era atingido por uma náusea. O estômago embrulhava-se todo. Sentia um asco repulsivo que o obrigava a sair pela casa abrindo portas e janelas de modo que o ar que entrasse pudesse varrer qualquer resquício de podridão.
Escovava os dentes, assistia ao jornal, ocupava os olhos com sangue, com morte, com dor. Nada lhe desagradava mais que o nojo causado por seu único descendente. Era assim que reagira nas primeiras vezes que se punha a pensar no que o outro estaria fazendo se por ventura estivesse vivo. Dessa vez não.
Depois de anos de ressentimento, de indiferença, o tempo mudara sua forma de pensar ou ele mudara sua forma de estar. Não existia borracha que apagasse a decepção. Já fazia parte dele. Não cortara o desgosto, a vergonha, como não cortaria uma perna ou um braço. Roberto pegou o telefone e discou o número sem pensar. Nem os segundos que antecedem o bip da chamada abriram caminho para o simples e lógico pensamento de que talvez, treze anos depois, aquele número pudesse estar desligado ou simplesmente pertencer a outra pessoa. O telefone tocou quatro vezes, um homem atendeu.

–Alô? 
–Alô?
­­–André?
–O que você quer?
–Você sabe quem é?
–E teria como não saber?
–Você sabe que dia é hoje?
–Quatorze de Agosto. Domingo. Dia dos pais. Você não tem calendário?
–Eu sei que dia é hoje. Queria saber se você lembrava.
–Aniversário de missa de sétimo dia. Teria como esquecer a data? 

Barulho de risadas. As crianças correm pela casa, gritam, chamam pelos pais. André tampa o bucal do aparelho e diz que já vai e que elas brinquem com a mãe enquanto ele fala ao telefone. Nunca ocorrera a Roberto que o filho pudesse ter se tornado pai e marido. Muito menos lhe ocorrera que o filho pudesse ter encontrado paz. Então, sentiu que a sua ligação viera em hora mais que oportuna.

–Ela tirou a própria vida e ainda consegui que tivesse um enterro cristão. Consegui um padre que rezasse as missas.
–O que você quer?
–Eu quero saber como você consegue se suportar depois de tudo.
–A culpa não foi minha.
–Então, você acha que eu fui o...
–Não acho que você tenha sido o culpado também.
–Foi a história que você contou, André.
–A culpa a matou. Não ter percebido.
–Você não se arrepende? Em nenhum momento? Nunca?
–Eu não matei minha mãe.
–Você ao menos a poupou dos detalhes?
–Então, é isso que o preocupa? Quer saber se ela morreu ciente da sordidez?
–Ainda um moleque! O que eu não entendo é por que você apareceu na missa se nem ao enterro teve a dignidade de ir. Você queria me matar de vergonha?

Por um momento, aquela noite veio à tona. A imagem da porta da igreja aberta, o cheiro da chuva, o menino magro e frágil que ele era, os pingos de água que escorriam por todo seu corpo, a poça de água que ia se formando no chão da igreja, o ódio, a raiva que sentia. Ele não via a ninguém. Fixou seu olhar no Jesus crucificado em cima do altar. O padre gesticulava e da sua boca saía um ruído abafado e quente. Tudo girava ao seu redor. Somente quando Roberto fora chamado a prestar homenagem a esposa, André se deu conta de onde estava. Despertou da transe e logo fora envolto por um estranho sentimento de hostilidade que o impulsionara a sair correndo. Correu até não sentir mais suas pernas.

–A última coisa que passou pela minha cabeça era se você teria ou não vergonha de mim. Ali seria a última vez que o veria. –um longo respiro– Logo ali, num lugar sagrado, em frente a todas aquelas pessoas... Irônico, não?
–Você quer me dizer alguma coisa, André? Por que se quiser, agora é a hora.
–Você nunca foi capaz de olhar para além do seu próprio umbigo.
–Ora, ora. O garotinho agora virou homem. Fale. Diga o que está há tanto tempo te corroendo. Ou só quer me desafiar?
–Longe de mim querer alguma coisa com você. Eu não fui ao enterro da minha mãe. Mas, Roberto, eu juro que se arrependimento matasse, eu iria ao seu sem nem piscar os olhos. E se precisasse, eu cavaria a sua cova com as minhas próprias mãos. E depois do caixão, a pá de terra, eu lançaria flores ao buraco que guardaria o seu corpo podre e imundo.
–Filho da puta ingrato! Você teve o meu melhor, eu te dei tudo! Todo o meu amor e, ainda assim, tem coragem de falar comigo dessa maneira.
–Você nunca soube o que era amar. Isso que você chama de amor me dá nojo.
–Você diz isso agora. –Um breve silêncio invadiu a linha telefônica.
–O que eu poderia dizer? Sei o que posso dizer agora e digo: se arrependimento matasse, eu não teria de volta a infância que você roubou, mas eu teria o prazer de sepultar um monstro.

E ali, eles desatam o nó que poderia ainda uni-los. Não há mais nada a ser dito. Essa fora a última conversa de suas vidas. André anda até os fundos da casa, onde suas duas meninas brincam com a mãe. Ele é tomado por uma serenidade nunca sentida antes, que só é interrompida pelos pedidos carinhosos e insistentes de suas filhas. Ele entra na brincadeira. Corre pelo jardim e gargalha e gira e se perde e se encontra numa alegria infantil. Sente o menino liberto da angústia.