segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

A Menina sem Estrela



Ela já queria conhecê-la. Só não imaginava que levariam tantos anos para acontecer o encontro. Muito menos poderia imaginar que se daria em tais circunstâncias. Só sabia que ela teria que ir à casa. 
Sempre imaginou uma casa espaçosa, com janelas grandes que dessem para um jardim. As paredes eram tão brancas quanto as nuvens do céu de verão. Havia uma cama de madeira sólida e, por cima, um colchão firme, mas macio que dava sustentação e conforto, envolto por lençóis de algodão tão suaves como deveriam ser. Ela podia sentir o vento suave da primavera invadindo os aposentos.
Na sua imaginação de criança, a tia, também de certa forma, uma criança, repousava esplêndida como se estivesse em um conto de fadas, como se fosse uma princesa, uma menina princesa. Foi a primeira pessoa que ela soube que vivia assim, adormecida. Alguns se referiam à sua condição a de um vegetal. Mas isso nunca lhe fez muito sentido. Os vegetais são para comer. Ela, para ser ninada. 
Jovem já havia expressado o desejo de conhecê-la. Talvez não tenha enfatizado a importância desse encontro, ou, talvez, o que seria mais provável, queriam poupá-la. Nunca entendeu porquê. Tentou insistir. Mas alguns insistimentos nunca são respondidos.
Os anos passaram. E aquele desejo ficou adormecido, como a sua tia. Guardado no esquecimento. A vida era demasiadamente difícil, corrida, dolorosa o suficiente para lhe ocupar quase toda mente, quase o tempo inteiro. 
Isso foi até uns seis anos atrás, quando ela finalmente conheceu o avô. Claro que já o conhecia, de nome, de histórias, de obras. Mas levou vinte e oito anos para realmente conhecê-lo. Quase que obrigada, meteu-se a ajudar nas comemorações do seu centenário de vida. A mãe dizia que só um Rodrigues poderia entender a outro. Entender, não a obra, mas o ser humano. Ela tinha razão. Quem daria conta de entender tamanha bondade, tamanha fúria? Quem daria conta de entender tantos homens em um só? 
Ela não conheceu só o avô. Conheceu a família inteira. Conheceu a si mesma em cada um deles, especialmente no avô, aquela figura polêmica, tão aclamado quanto incompreendido. Descobriu um fofo feroz que assim como ela detestava injustiças. Reconheceu o seu humor, a sua ironia, a sua petulância, até a sua própria chatura. Ele era implacável com os falsos messias. Ela seria assim também ou poderia ser poupada de tanta ousadia?
Conheceu também por ele e pela obra, aquela que seria a sua tia adormecida, a menina sem estrela, a menina que nascera cega e teria que viver uma vida inteira deitada numa cama. Não, não era como nos contos de fada. Ela já sabia disso. Já tinha mais do que idade suficiente para entender o que significava passar uma vida deitada a uma cama. 
Deixou os anos passarem novamente até que um dia pressentiu. E com a urgência que um mal pressentimento pede, falou com sua mãe. Pediu para marcarem uma visita. Estavam fora do país e a ideia era não esperar tempo demais, só o suficiente para o ano começar com todas as suas demandas mediocremente cotidianas. 
Não queria deixar passar janeiro, mas tantas coisas não poderiam passar do primeiro mês daquele ano. Se perdeu em tarefas até que teve um estalo. Dessa vez, não deixaria para depois. Pediu a uma tia que intermediasse o encontro. E assim foi feito. Aguardou atenta ao seu telefone por toda aquela sexta-feira. Nada. 
No sábado, mergulhada nos afazeres maçantes da vida perdeu a ligação. Era um número desconhecido. E era justamente um número desconhecido que ela esperava. Não teve dúvidas, retornou. Nem percebeu como, mas estava na janela do seu quarto fumando. Ouviu uma voz desconhecida de mulher. Ela sabia quem era, mesmo sem nunca ter ouvido a voz da outra. Se apresentou. Falaram rapidamente do desencontro no dia anterior. E, então, a notícia: a menina sem estrela se fora. 
Sentiu o seu chão cair. Mas fincou os pés o mais forte que pode. Do outro lado, a mulher, meia irmã por parte de mãe da sua meia tia por parte de avô, falava sem parar. Ela mal conseguiu dar os pêsames. Foi atropelada por uma avalanche de informações. Mal pode ela sentir a sua própria perda. Era melhor amparar e dar um sentido pratico àquilo tudo. Combinou que ligaria para a mãe, para a tia, prometeu que em breve qualquer uma delas ou até ela mesmo retornariam. 
Desligou o telefone e antes que pudesse sentir o peso da morte, começou a ensaiar a primeira ligação. Sua irmã que atendeu. A mãe estava no banho. Avisou a irmã. Deu detalhes da ligação. Desligou. E seguiu o plano ligando para tia. Contou novamente os detalhes da ligação. E do outro lado, ouviu um pragmatismo suicida. Tentou ponderar, mas como ponderar nessas circunstâncias? Combinaram de irem juntas. Ela finalmente conheceria sua meia tia, sua tia adormecida, aquela que um dia fora princesa de contos de fada, e, hoje, um dos maiores carmas de toda uma família. Não era um peso. Nunca entendera assim. Mas jurava que a condição da tia era um alerta a todos eles, inclusive a ela. 
Manteve a cabeça em cima dos ombros. Ligou para outra irmã, avisou do pragmatismo suicida da tia, concordaram que a mãe, em sua atual condição de saúde, precisava ser protegida. Queria proteger a tia também, mas como a mãe, não permite que lhe deem as mãos. 
Manteve a cabeça em cima dos ombros e foi conferir o frango que assava. Montou uma salada no prato, temperou, comeu. Precisava comer. Não que quisesse. Mas já haviam passado tantas horas desde o café da manhã que ela temia não ter forcas para ir até à casa. O frango finalmente ficou pronto. Comeu. 
Terminado o almoço, foi tomar banho, o segundo do dia. Queria estar limpa. Entrou no quarto refrigerado e as roupas já estavam lá, no armário, claro. Foi uma dessas raras vezes em que ela soube exatamente o que vestir, uma calcinha azul marinho, uma calça azul marinho, uma camisa social de algodão branca sem mangas, um tênis azul claro, um colar de contas azul claro, presente da sua prima caçula, e, um pingente com a sua entidade. Estava pronta. E agradecida. Sabia que havia sido vestida. 
Faltavam alguns minutos para a tia passar de táxi. Ela deveria se maquiar? Não sabia. Então, foi até a sua nécessaire e escolheu o único batom rosa claro, quase transparente, que tinha. Passou nos lábios. Desceu pelo elevador. 
No táxi, sua tia falava. Ela ouvia. Apenas. Estava concentrada em encontrar o endereço, olhar o mapa. Estava calor demais para errarem e terem que andar. Foram pela 19 de fevereiro, mais rápido, e como, turistas ficaram conferindo a numeração dos prédios até chegarem à casa. Subiram pelo elevador de serviço já que o social estava em manutenção. Já na porta da cobertura, ela teve seu primeiro estranhamento. Não tem número. E por pura exclusão, soube que estavam na porta certa. Tocaram a campainha. A cuidadora, em prantos, abrira a porta. Fez lembrar uma mãe que acabara de saber da morte do filho. Chorava escandalosamente. Só ela. Os demais tinham uma cara de paisagem desconcertante. Exceto, a meia irmã por parte de mãe. Quicava de um lado para o outro, falava com um primo, com o rapaz da funerária, com a cuidadora, comigo, com todos, com ninguém. Estava presa num redemoinho de afazeres que mais parecia uma daquelas pessoas que nunca na vida resolveram qualquer coisa. 
E entre acompanhar aquela ansiedade e olhar a casa, ela escolheu olhar a casa. As paredes não eram brancas como nuvens. Eram encardidas como de uma república de estudantes pobres, mas pelo menos havia uma grande janela com uma cortina esgarçada pelo tempo, mas que permitia entrar luz naquele lugar. Os móveis pareciam ter sido doados, nada realmente fazia sentido ali. Nem mesmo a pequena estátua do seu avô, nem mesmo a foto dele pendurada na parede. A tia pediu para ir ao quarto. Ela, sem falar nada, a acompanhou. O corredor era escuro, quase sombrio.
Entraram na primeira porta a direita. Sua meia tia, sua tia inteira, a princesa dos contos que não eram de fadas, a menina sem estrela, repousava rígida. Exatamente o oposto de tudo que um dia poderia imaginar, criança ou adulta. Tão magra, tão pequenina, tão frágil, tão forte aquela imagem. Quase tão forte quanto o próprio aposento. Paredes tão sujas quanto de um verdadeiro cortiço. 
Notou um homem negro sentado num colchão ao lado do dela. Nunca havia visto um colchão tão encardido de sujeira. E olha que ela já havia conhecido cortiços, puteiros, repúblicas, favelas. O quarto estava abafado, nem de perto sentira a brisa gostosa que um dia imaginara. Os prantos da cuidadora deixavam a atmosfera ainda mais pesada. A tia, aquela que a acompanhava, pediu que o homem e a moça as deixassem. Estava tão atordoada que por um milésimo de segundo se sentiu feliz. Alguém naquele momento conseguiu o que ela mais queria, paz para se despedir daquela que há tantos anos queria conhecer. 
Fechou os olhos e começou a rezar. E começou a sentir o peito sufocar, o coração acelerar. Ela rezava. E quanto mais rezava, mais sufocada se sentia. Estavam lá. Todos eles. Até aqueles que ela não sabia quem eram. Começou a tremer. E por um instante, por um longo e dilacerante instante, achou que fosse desmaiar. Logo ela, que raramente se deixava abater por qualquer coisa.
Não queria que tia, a que estava rezando ao meu lado, percebesse. E continuou a rezar, cada vez mais rápido. Rezou tudo o que sabia, todas as rezas que lembrava. Queria saber quem eram aqueles que estavam lá. Eles haviam vindo buscá-la? Mas toda vez que seu pensamento não era reza, sentia vertigem. Continuou a rezar. Até a tia trazê-la daquela transe. Saíram do quarto de frente. Continuou a rezar e rezou até sair daquela casa. E na saída, viu que as espadas de São Jorge estavam completamente derrubadas no chão. Rezou no elevador. Rezou no caminho de volta pra casa. Rezou quando colocou suas roupas pra lavar e quando tomou banho de sal grosso. E vai continuar rezando até ter certeza que a meia tia, a tia inteira, a menina sem estrela irá, ela mesma, brilhar no céu.