quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Crônica de Quarentena # 01 ou Corona Feelings




Meu Deus! Eu vou morrer. Foi assim que despertei de um cochilo na tarde da última sexta-feira. Dois dias antes, começara a me sentir mal. Dor nos olhos e corpo febril. Antecipei a ansiedade e experimentei o termômetro de mercúrio que, como uma dessas velhas preciosidades, se escondia no meu armário. Eu mal tenho 36 anos e já tenho um armário de remédios. Jesus amado! Eu sou a minha avó. Não, não sou. Se eu fosse, teria arnica. Vidros e mais vidros de arnica, além de sabe-se lá quantas cartelas de comprimidos. Não tenho arnica.

Esperei 5 minutos e descobri que o corpo febril não passava a temperatura de 37ºC. Respirei fundo. Pode não ser nada. A dor na região pélvica que já durava mais de duas semanas estava desaparecendo. Veja bem. Eu nunca tive grandes complicações na vida. Nunca quebrei um osso. Mesmo com todas as travessuras de infância nas fazendas, nas piscinas, nas quadras de futebol, nas cavalgadas e até nas ruas do Rio de Janeiro. Não quebrei um osso. A única vez que enfrentei uma sala cirúrgica foi para tirar uma pedrinha do rim. Pedrinha. Mas isso tem anos. E anos depois dessa cirurgia, outra pedrinha surgiu.

Você parou de comer carne vermelha? Eu não. Passou a tomar suco de limão e/ou abacaxi diariamente? Eu não. Eu não precisava me preocupar com a segunda pedrinha, disse o médico. Ela estava lá de forma que provavelmente não se moveria. Eu saberia quando ela se movesse. E então poderia me preocupar. A dor pélvica me lembrou a primeira pedrinha. Uma semana sentindo a uretra. Meu pai diz que só descobrimos que uma parte do corpo existe quando dói. Pois bem, um cirurgião passou um cateter pela minha uretra, quebrou a pedrinha, ela desceu, ele guardou num potinho pra me entregar, fim da cirurgia. Uma semana de dor na região pélvica. Eu nunca havia pensado antes na uretra. E depois dessa semana de pós operatório fiquei pensando nela por alguns dias seguidos. Mas isso já tem alguns anos.

Lembrei que a uretra existia. Pensara nela nas últimas 3 semanas. Será que a segunda pedrinha se mexeu? Estou há meses pensando no meu rim. Ou melhor, há meses o meu rim me lembra que ele existe. Dores pontuais. No começo, o susto me fez beber mais água. A dor passava e eu esquecia o rim. De uns tempos pra cá, bebendo água ou não, lá vinha uma pontada. A dor na uretra me lembrou o rim. Benza a Deus! A segunda pedrinha está se movendo. Esse tempo todo devia estar descendo o rim. E agora deve estar descendo a uretra. Que maravilha! Dos males, o menor. A pedra sai sozinha e dessa vez eu não pago anestesista.

Acontece que na quarta-feira passada, a dor na uretra ultrapassou recordes. Lembrei do médico que já havia me receitado um comprimido de dor duas semanas atrás. Tomei. Eu tenho uma armário de remédios, mas detesto ter que toma-los. E, em menos de uma hora, a dor grau 6 do dia inteiro, grau 3 das últimas semanas, desaparecera. Uma bonequinha no sofá. Cochilei por mais de duas horas. E acordei febril. Levemente febril me avisa o termômetro. Agora a dor é nos olhos. Respirei fundo.

Minha namorada tenta me convencer que eu uso os olhos demais. Escrevo demais. Leio demais. Assisto demais. Eu tento convencê-la que os uso de menos. Queria ler mais, escrever mais, ver mais. Argumento que faço pausas a cada hora. Coloco roupa pra lavar, jogo lixo fora, bebo água. A cada hora, eu levanto e me distraio. Se não estivesse em quarentena, provavelmente estaria lendo mais, escrevendo mais. Nem eu e nem ela estamos convencidas. A dor dos olhos não está explicada. Mas e a febre?

Será uma infecção? Eu jurava que era uma pedrinha descendo. Já estava contando com a economia do anestesista. Antes que ansiedade chegasse, penso que não há razão pra me preocupar. Febril não é febre. Melhor esperar. Na manhã seguinte, acordo sem febre. E sem lembrar que tinha uretra. Mas em compensação. Em compensação, senti todas as partes do meu corpo. A cabeça, por exemplo, tem maças, tem o buraco dos olhos, tem testa, tem laterais atrás dos ouvidos, tem teto. Sentia cada parte dela como se fosse única, singular. Os pés também doíam. Os cotovelos doíam. A lombar doía. O externo?

A última vez que senti o externo devia ter uns 16 anos. Um alongamento mal executado há 20 anos atrás. Porque diabos estou sentindo o externo? Passo o dia cochilando. Reunindo forças. A noite, mando mensagem pro médico que só me responde no dia seguinte. Ele passa instruções. Eu vou segui-las. Até o meio dia, nada demais. A tarde chega e com ela, uma tosse. E também um pouquinho de catarro. Agora já estou desejando a dor pélvica de volta. Porque basicamente eu migrei de um pontinho pro corpo todo.

Nada da febre. Pedido médico em mãos. Laboratório confirmado. E o rim dói. E se não for uma infecção urinária? Verdade seja dita: o que não é ruim que não pode ser ainda pior? E se for infecção no rim? E se eu estiver perdendo tempo? E se isso que começou com uma pontadinha na uretra tomar meu corpo todo? E se eu tiver uma infecção generalizada? Uma amiga mandou mensagem na quarta-feira. Disse que sonhou comigo. Eu respondi que esperava que tivesse sido um sonho divertido. Eu realmente espero que tenha sido divertido.

Eu não posso entrar em um hospital. Se eu entro pra tratar um rim, eu morro do pulmão com a porcaria do vírus? Até então eu não pensara no vírus. Até então eu driblei a ansiedade. Alguns chocolates, um porquinho assado com farofa, eu estava driblando a ansiedade. Mas agora estou convencida de que vou morrer. Eu não tenho a menor condição de enfrentar o covid. Eu sou fumante. Estou sedentária. Estou acima do peso.

Droga. Eu não fiz nada com a minha vida. Sério. Eu não fiz porcaria nenhuma com a minha vida. Eu não tenho nem um hobby qualquer que me fizesse levemente feliz. Eu não casei. Não tive filhos. Eu não fiz um décimo das viagens que gostaria. Eu não escrevi um livro. Não realizei nenhum sonho. Eu só trabalhei pra pagar contas. Eu não posso morrer. Não agora. Minha namorada estava prestes a me convencer de que eu trabalho demais e que eu deveria cuidar melhor de mim.

Droga! Se é pra morrer que seja com sorvete. Encomendo 2 litros dos sabores chocolate belga e crocante com amêndoas. Não satisfeita, peço um hambúrguer e uma porção de batatas fritas. Agora, me sinto suicida. Se é pra morrer que seja nos meus moldes. Que louca! Como, como se não houvesse amanhã. Durmo. Acordo e vou fazer os exames. Vou de máscara. Fico a 2 metros de distância das pessoas. Ando no asfalto para não passar perto de uma velhinha na calçada. Eu não quero ser uma assassina. Não nessa altura do campeonato. Ou pelo menos vou poupar as velhinhas. Eu tenho avós, ora bolas.

Volto pra casa. Estou exausta. Intercalo cochilos no sofá com uma série de judeus ultra ortodoxos. Eu poderia ter aquela vida. Eu poderia ter 6 filhos e comer ensopados de legumes todos os dias. Eu poderia ser mais grata e agradecer a D’us a cada gole de água. Caramba. Eu sou uma filha da mãe ingrata. Eu mal bebo água.

Hoje acordo um pouco melhor. Não passo o dia me arrastando. As dores pelo corpo diminuíram. Acho que era uma sinusite. Talvez eu não morra. Preciso começar um detox. Compro os orgânicos pelo site, anoto as receitas que imunizam e desinflamam o corpo. Respiro fundo. Me despeço de uma pizza calabresa e de uma taça de sorvete. Estou pronta para um novo recomeço. Pego um livro, sento na minha poltrona favorita. Acho a página onde parei. Leio. Sinto uma pontada dilacerante no corpo. Putz! Não é o rim. É o fígado.




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