quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O Cheiro do Menino Homem


O respeito do pai não viera com o avançar da idade. Os números indicavam que Paolo já era um adulto. Mas para seu progenitor, em dias bem humorados, não passava de um menino. O filho, no fundo, percebia o quase desprezo sentido. Por dentro fora, negava culpa. Por dentro dentro, naquele lugar onde ficam guardadas as mais remotas lembranças e as grandes angústias, preferia nem saber o que achava do assunto. Menino homem - corpo de homem, coração de menino - levava a vida com grandes preocupações.
Os aborrecimentos do rapaz não eram os que o pai esperava que ele, aos vinte e três anos, tivesse. Arturo, quarto filho de uma família de imigrantes, trabalhou bastante para que nada faltasse aos seus dois herdeiros, Paolo e Agata. E como a maioria dos seus contemporâneos passara mais tempo longe do que perto. E quando perto, muito longe. Pai e filho pertencem a gerações tão absurdamente diferentes que seria até curioso não haver abismo entre os dois. Arturo nem sabe que história era essa de adolescência tardia. Não seria um prolongar desnecessário da fase mais besta que o homem tem?
Faltavam ainda sete anos para que o filho chegasse aos trinta. Para o pai, os anos corriam como meses e as escolhas de Paolo não o levariam a lugar algum. Depois de terminar a faculdade, concluída com muito custo e desgosto, o rapaz, ao invés de procurar um emprego ou prestar concurso, como o pai gostaria, voltou a estudar. Arturo achava que essa história de que o filho não se realizaria como advogado - que sua vocação residia em outro universo - era a mais pura sem-vergonhice. Mal sabia ele que seu filho era só mais um de tantos nessa posição ridícula de recomeço após vivenciar grande descontentamento. E talvez se não fosse pelo fato de ser seu filho, aplaudiria um jovem rapaz que prefere ter coragem ao invés de pura resignação.
O italiano não era duro por que tivera uma vida duríssima. Era o homem caçula de uma família de imigrantes. O único do sexo masculino que nascera e vingara em solo brasileiro. Seu pai, homem um pouco mais instruído que a maioria dos seus conterrâneos residentes no país, conquistara uma posição privilegiada na sociedade. Teve trabalho e também sorte, bons investimentos e bons sócios. Criou os filhos com casa, comida e boa educação. Não ostentava luxo, mas não deixava nada faltar. Arturo e os irmãos ajudavam nos negócios da família, enquanto que as irmãs ficavam com a mãe cuidando da casa.
Arturo adorava falar para Paolo, desde que este se entendia por gente, o quanto já havia feito quando tinha sua idade. Aos vinte e três, já era formado engenheiro. E fora incumbido de cuidar de uma grande obra do outro lado do país. Num lugar que mais parecia terra de ninguém. Sob seu comando, estavam mais de quinhentos homens, era o que dizia. Não contava suas histórias com o brilho no olhar de quem gosta de reviver memórias. Acreditava que de uma forma ou de outra, arrancaria da cabeça do filho as idéias desmioladas.
A verdade é que Arturo nunca conseguiu mesmo ser pai de Paolo. Que um homem de sua origem e idade exigisse sempre as melhores notas e conduta exemplar, natural. Mas não era isso, ele competia com o filho como se fosse irmão um pouquinho mais velho, queixoso de ter perdido afeto dos adultos para o que acabara de chegar. Aquele irmão que sempre precisa ser melhor em tudo. O filho nunca tivera uma conquista, na qual o pai não fizera questão de sombrear com as suas. E quando ele não ofuscava o mérito do menino relatando um mérito próprio, era porque estava tão absorto em si mesmo que sua indiferença cuidava de esmagar um pouquinho mais a auto estima do bambino.
            Sempre criticado, acusado de fazer péssimas escolhas, mesmo quando estas se mostravam acertadas, não seria de estranhar que o menino homem tivesse dificuldades em se livrar da condição infantil que ainda o ligara ao pai. Buscava aprovação. Mesmo discordando de tanta coisa, mesmo enxergando o mundo de forma tão diferente, sempre consultava o pai. A admiração que sentia por seu progenitor, por sua carreira e a forma generosa como tratava as pessoas, era grande demais para entender que enquanto fosse complacente, só teria desprezo disfarçado de uma descabida comiseração.
            A mãe de Paolo nunca contradizia o marido, nem na frente, nem por trás. Eles não eram daqueles típicos casais de antigamente, cujo papel do homem era ser vilão e o da mulher, ser boazinha. Também era rígida, mas definitivamente muito mais afetuosa que o marido. Sempre reconhecia as conquistas do filho e gostava de lembrá-lo o quão orgulhosa ficava com suas realizações. Mas dentro fora, isso pouco efeito tinha. Se de um lado a mãe o colocava para cima, do outro, venerava o pai. Então, se o pai era rei absoluto, tudo o que ela dizia mais parecia ser conversa de mãe. Uma forma encontrada por ela para aumentar a confiança do filho e não elogio merecido. Dentro dentro, filho pensava então que a mãe o tivesse menos ainda, por isso ela, vez outra, o enaltecia.
            Durante muitos anos, Paolo, sem entender direito, tinha pela mãe esse ressentimento de quem é tratado como vítima, não sendo, ou sendo, não querendo ser. Faltava-lhe com o devido respeito. Não era propriamente mal criado. Aprendera com o pai a ter aquele olhar indiferente, menosprezando os seus dizeres. Paolo ouvia sempre, mas descartava os conselhos da mãe da mesma forma que Arturo descartava as opiniões do filho.  
            O menino homem soprava velas e a medida que os anos passavam, mais difícil era frear as angústias que moravam dentro dentro dele. Aos poucos, os conflitos acobertados das mais falsas ilusões iam se transpondo para fora. Paolo não tinha bem o controle do que saía. E o que era ruim demais e por isso justificava o esforço de trancar a sete chaves dentro de si, ia se transpondo para o mundo ao seu redor. Os muitos segredos guardados cheiravam mal, alguns a naftalina, outros, a cachorro molhado.
E por causa do cheiro que as mágoas tinham, a casa tornou-se insuportável. As salas, os quartos, a varanda, o jardim, a cozinha, não havia lugar que não estivesse contaminado com o odor. No começo, Paolo tentou com muita força guardar de volta aquilo tudo, não conseguiu. Era mais forte do que ele. E a vergonha era tanta que só fazia o cheiro piorar. No início, ninguém entendia o que estava acontecendo. A mãe que era muito zelosa começara a espalhar pelos cômodos mais vasos de flores que o habitual. Tendo percebido que seu jardim não daria conta e que ela não teria vasos suficiente, passara a utilizar outras táticas. Comprou aromatizantes para todos os cômodos, o que não adiantou. Arturo que já não tinha lá um belo olfato começou a se incomodar. Talvez menos com o cheiro e mais com a inquietação da esposa. Já havia procurado explicações para o odor, explorando a casa por dentro e por fora na tentativa de achar o local de onde exalasse com mais força. E nada.
Não demorou para os desentendimentos começarem a acompanhar toda e qualquer reunião familiar. A mãe era acusada de louca, pois resolvera esquentar canela e sair correndo com a frigideira quente na mão benzendo os aposentos. A filha passara a costurar obsessivamente saquinhos de cravos da índia, os quais ia colocando dentro de tudo quanto era vão, buraco, esquina que encontrava. Fato que também a enquadrava no perfil de louca segundo o pai. Este era tido como inoperante pela filha e relapso pela esposa. O caos estava armado. Ninguém mais suportava o cheiro e o convívio familiar.
E o menino homem, mesmo com muita vergonha, já não sabia se era do cheiro ou de não ter contado a verdade antes, se viu obrigado a enfrentar os seus entes queridos. Fosse como fosse, ele contaria a verdade. Afinal, a culpa pelo caos era maior do que o medo de não achar a cura. No fundo, ele tinha a esperança de que seus familiares entendessem a sua situação. Afinal, além de se incomodar com o cheiro tanto quanto os outros, tinha vergonha de ser o responsável. E enquanto todos buscavam uma resposta pela casa, ele buscava uma resposta nele mesmo. E enquanto não conseguia parar de exalar e nem de suavizar o odor, ficava o menor tempo possível dentro da casa, o que também o fazia sofrer.
A esperança move o mundo. Não, a necessidade move o mundo. Paolo esperou o término do jantar. Não demorou, afinal o odor não favorecia o apetite. Ele então se levantou e pediu a atenção de todos. Enquanto procurava as palavras certas, o telefone começou a tocar. Sua mãe levantou e foi atender. Do outro lado, era o primo Antelmo, neto do irmão do pai de Arturo. Ligava da Itália para saber quando Paolo chegaria. A mãe não entendeu. E então, o primo perguntou de novo, dessa vez, complementando a pergunta com a informação de que Paolo conseguira a bolsa de mestrado em história da arte na mesma universidade que ele, Antelmo, lecionava. Foi um alvoroço. Paolo estava tão preocupado com o odor que esquecera por completo os trâmites da vida. A mãe e a irmã ficaram radiantes. O pai, sempre com aquela pontadinha de amargura, solta pelo menos esse mestrado é na Europa, lá que se fez arte de verdade. Acabou que com a confusão, o odor ficou em segundo plano. E depois, Paolo achou melhor poupar a família do desgosto. Ele iria embora e os problemas estariam resolvidos.
Na Europa, ele tratou de viver sua vida. Mantinha o menor contato possível com o Brasil. Tinha medo. E nem gostava de pensar nisso. Passados quatro anos desde que deixara o conforto de casa para aventurar-se pelo mundo, Paolo começou a sentir muita falta da família. O tempo longe o transformara. Depois que terminou o mestrado, passou dois anos viajando pela Europa. Fez estágios em museus, conheceu pessoas, se apaixonou, se iludiu, se apaixonou de novo. E quando viu que era hora, entrou no doutorado. Estava tão bem e confiante que resolveu convidar a irmã para passar uma temporada com ele. Agata não pensou duas vezes, recebido o convite, fez a mala e foi.
Nos primeiros dias, os irmãos saudosos fizeram uma festa danada. Aproveitaram para passear pela região, visitar os pontos turísticos e os locais favoritos de Paolo. Também experimentaram as melhores cantinas. E numa noite dessas, depois de beberem a segunda garrafa de vinho, a irmã começou a contar como o pai mudara nos últimos anos. Como criticava tudo o que ela fazia. E que estava tão amargo que era impossível ficar perto dele.  Paolo queria perguntar do odor desde que viu a irmã no aeroporto. Talvez ali seria a hora de tocar no assunto. E o cheiro da casa? Perguntou antes que pudesse se arrepender. A casa sempre teve um cheiro esquisito, né, Paolo?! Na sua época, quer dizer, antes de você ir embora, era de cachorro molhado. Agora é de enxofre. Definitivamente ele não esperava por aquela resposta. Como assim a casa sempre tivera um cheiro esquisito? Ela ri, percebe ser a única que sabe o segredo. Quando a gente era criança tinha cheiro de tuti fruti, não lembra? Também teve cheiro de romã. Depois, teve cheiro de manga. Um monte de cheiro. Ele fica estarrecido. Nunca pensara sobre isso. E era verdade. A casa sempre exalou um odor gostoso. Quer dizer, exceto naquela vez que vinha dele. Então, a irmã caçula, como se invadisse seus pensamentos, o traz de volta para o instante, ao mesmo tempo que arranca o peso do mundo de seus ombros como se a culpa fosse tão leve quanto a pena de um beija-flor. Seu bobo, a nossa casa sempre cheira ao sentimento dos seus moradores. 

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