terça-feira, 15 de novembro de 2011

Amor ou o Podre

Já havia alguns anos que Roberto gostaria de receber notícias de seu filho. Não era uma idéia recorrente. E nas raras vezes que se permitiu encontrar com o passado se deparara com a distância descomunal que existia. Era quase como lembrar de um ente falecido. Um sorriso, um olhar, um breu escuro, uma doce e delicada dor de curto pulsar. Se cobrasse da memória mais imagens ou mais gestos era atingido por uma náusea. O estômago embrulhava-se todo. Sentia um asco repulsivo que o obrigava a sair pela casa abrindo portas e janelas de modo que o ar que entrasse pudesse varrer qualquer resquício de podridão.
Escovava os dentes, assistia ao jornal, ocupava os olhos com sangue, com morte, com dor. Nada lhe desagradava mais que o nojo causado por seu único descendente. Era assim que reagira nas primeiras vezes que se punha a pensar no que o outro estaria fazendo se por ventura estivesse vivo. Dessa vez não.
Depois de anos de ressentimento, de indiferença, o tempo mudara sua forma de pensar ou ele mudara sua forma de estar. Não existia borracha que apagasse a decepção. Já fazia parte dele. Não cortara o desgosto, a vergonha, como não cortaria uma perna ou um braço. Roberto pegou o telefone e discou o número sem pensar. Nem os segundos que antecedem o bip da chamada abriram caminho para o simples e lógico pensamento de que talvez, treze anos depois, aquele número pudesse estar desligado ou simplesmente pertencer a outra pessoa. O telefone tocou quatro vezes, um homem atendeu.

–Alô? 
–Alô?
­­–André?
–O que você quer?
–Você sabe quem é?
–E teria como não saber?
–Você sabe que dia é hoje?
–Quatorze de Agosto. Domingo. Dia dos pais. Você não tem calendário?
–Eu sei que dia é hoje. Queria saber se você lembrava.
–Aniversário de missa de sétimo dia. Teria como esquecer a data? 

Barulho de risadas. As crianças correm pela casa, gritam, chamam pelos pais. André tampa o bucal do aparelho e diz que já vai e que elas brinquem com a mãe enquanto ele fala ao telefone. Nunca ocorrera a Roberto que o filho pudesse ter se tornado pai e marido. Muito menos lhe ocorrera que o filho pudesse ter encontrado paz. Então, sentiu que a sua ligação viera em hora mais que oportuna.

–Ela tirou a própria vida e ainda consegui que tivesse um enterro cristão. Consegui um padre que rezasse as missas.
–O que você quer?
–Eu quero saber como você consegue se suportar depois de tudo.
–A culpa não foi minha.
–Então, você acha que eu fui o...
–Não acho que você tenha sido o culpado também.
–Foi a história que você contou, André.
–A culpa a matou. Não ter percebido.
–Você não se arrepende? Em nenhum momento? Nunca?
–Eu não matei minha mãe.
–Você ao menos a poupou dos detalhes?
–Então, é isso que o preocupa? Quer saber se ela morreu ciente da sordidez?
–Ainda um moleque! O que eu não entendo é por que você apareceu na missa se nem ao enterro teve a dignidade de ir. Você queria me matar de vergonha?

Por um momento, aquela noite veio à tona. A imagem da porta da igreja aberta, o cheiro da chuva, o menino magro e frágil que ele era, os pingos de água que escorriam por todo seu corpo, a poça de água que ia se formando no chão da igreja, o ódio, a raiva que sentia. Ele não via a ninguém. Fixou seu olhar no Jesus crucificado em cima do altar. O padre gesticulava e da sua boca saía um ruído abafado e quente. Tudo girava ao seu redor. Somente quando Roberto fora chamado a prestar homenagem a esposa, André se deu conta de onde estava. Despertou da transe e logo fora envolto por um estranho sentimento de hostilidade que o impulsionara a sair correndo. Correu até não sentir mais suas pernas.

–A última coisa que passou pela minha cabeça era se você teria ou não vergonha de mim. Ali seria a última vez que o veria. –um longo respiro– Logo ali, num lugar sagrado, em frente a todas aquelas pessoas... Irônico, não?
–Você quer me dizer alguma coisa, André? Por que se quiser, agora é a hora.
–Você nunca foi capaz de olhar para além do seu próprio umbigo.
–Ora, ora. O garotinho agora virou homem. Fale. Diga o que está há tanto tempo te corroendo. Ou só quer me desafiar?
–Longe de mim querer alguma coisa com você. Eu não fui ao enterro da minha mãe. Mas, Roberto, eu juro que se arrependimento matasse, eu iria ao seu sem nem piscar os olhos. E se precisasse, eu cavaria a sua cova com as minhas próprias mãos. E depois do caixão, a pá de terra, eu lançaria flores ao buraco que guardaria o seu corpo podre e imundo.
–Filho da puta ingrato! Você teve o meu melhor, eu te dei tudo! Todo o meu amor e, ainda assim, tem coragem de falar comigo dessa maneira.
–Você nunca soube o que era amar. Isso que você chama de amor me dá nojo.
–Você diz isso agora. –Um breve silêncio invadiu a linha telefônica.
–O que eu poderia dizer? Sei o que posso dizer agora e digo: se arrependimento matasse, eu não teria de volta a infância que você roubou, mas eu teria o prazer de sepultar um monstro.

E ali, eles desatam o nó que poderia ainda uni-los. Não há mais nada a ser dito. Essa fora a última conversa de suas vidas. André anda até os fundos da casa, onde suas duas meninas brincam com a mãe. Ele é tomado por uma serenidade nunca sentida antes, que só é interrompida pelos pedidos carinhosos e insistentes de suas filhas. Ele entra na brincadeira. Corre pelo jardim e gargalha e gira e se perde e se encontra numa alegria infantil. Sente o menino liberto da angústia.

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