quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Laurinha, Meu Destino!



–Alô, José?
–Sim. É ele.
–Oi, rapaz, aqui é João!
–João, meu amigo, quanto tempo! O que conta de novo?
–Por aqui, sem grandes novidades. Quer dizer, meu aniversário tá chegando.
–Opa, notícia boa! E vamos comemorar quando?
–Estou marcando um choppinho na sexta com o pessoal da metralha lá no Arco do Teles. Assim, o povo sai do escritório e vai pro abraço!
–Rapaz, que coisa boa! Mas acho que não vou, não.
–Mas o que quê há? Vai me dizer que Laurinha agora deu pra controlar os seus chopps?!
–Imagina! João, eu tenho a mulher que todo homem pediu a Deus. Não me regula em nada. Eu é que tenho uma entrevista de trabalho do outro lado da cidade. Sexta, eu nem passo no escritório.
–Eu não sabia que você estava procurando emprego.
–Eu não estou. Acontece que aquela agência vive me mandando anúncio de vagas com o meu perfil.
– José, porque você não avisou que já arranjou emprego, homem?
–Pois é! Eu ia avisar. Mas aí Laurinha...
–Você não está satisfeito lá no escritório? Não me falou nada. Eu podia ajudar. A firma que eu estou agora é excelente.
–Pois é, mas eu estou satisfeito. O pessoal é bacana. O salário é bom! O serviço é tranqüilo. É que Laurinha tem essa mania...
–Que mania?
–Ela diz que nós devemos sempre estar de portas abertas para as oportunidades. O destino não trabalha sozinho.
–Sentido faz.
–Já é a terceira entrevista de emprego que me chamam do lado de lá da cidade. Tudo empresa grande. Dessa vez, vou fazer entrevista numa multinacional.
–Não me diga?
–Pois é! E digo mais, tenho um amigo que trabalha numa construtora e já me falou que eles estão com mais de cinco empreendimentos praquelas bandas. É só eu ligar que consigo um apartamento com um belo desconto. Depois disso tudo, eu pensei: a mulher tem razão, destino!
–Rapaz, por tudo o que você está falando, acho que é coisa de destino mesmo. Olha que eu não sou de acreditar nessas coisas, não. Mas e o chefe? Vai faltar na sexta?
– E não é que o Geraldo me deu folga?! Acho que peguei o homem de bom humor.
–Deve ter sido. Porque ele não costuma afrouxar com ninguém. Quer dizer, no meu tempo, só afrouxava com quem usava saia e rebolava, né?
–Acho que sim.
–Conversa está muito boa, mas eu tenho que desligar. Depois você me conta como foi lá. Boa sorte.
–Obrigada. Olha, vou avisar Laurinha. Se ela puder, tenho certeza que irá adorar comemorar o seu aniversário.
–Maravilha!
–Abraço, meu amigo.
–Abraço.

Na tão esperada sexta-feira, enquanto Laurinha arruma sua bolsa para sair para trabalhar, José, confortavelmente sentado a mesa da cozinha, lê o jornal. O marido diz:

–Amor, não esquece que hoje tem aniversário do João.
–Eu sei. Você já falou umas três vezes!
–Você vai?
–Vou sim. Faz tempo que não vejo o povo. Naquele churrasco de fim de ano, eu estava visitando minha mãe...
–Maravilha! Manda um abraço pros rapazes. E um beijo nas moças.
–Mando os abraços. Os beijos, não vou mandar não.
–Mulher ciumenta!
–Eu cuido do que é meu. Boa entrevista!
–Vem cá, eu preciso de um beijinho!
–Para! Assim eu me atraso. Você sabe como é o pessoal do banco...
–Até mais.
–Até. Boa sorte!

José sai de casa com bastante antecedência. A distância entre seu atual apartamento e a empresa que fará entrevista é grande e o trânsito costuma ser bem intenso nas tardes de sexta-feira. Ele chega com uma boa folga. Aproveita para conhecer as instalações e conversar um pouco com o pessoal que trabalha lá. Vinte minutos depois do horário combinado, é chamado para entrar na sala. Sai em menos de dez, sentindo não ter causado boa impressão. Segue rumo ao ponto de ônibus e pega uma van em direção a cidade. Com sorte, ainda consegue tomar um choppinho com o pessoal.
Mas a tal van é dessas ilegais. Vendo um congestionamento causado por uma blitz, o motorista não quer nem saber, sobe no meio fio e atravessa para a outra pista quase causando um acidente. Os passageiros ficam nervosos e começam a resmungar. Umas duas mulheres começam a ensaiar um barraco, quando o filhote de Nem berra de volta:

–Todo mundo de bico calado nessa porra! Vai sobrar chumbo.

            Nesse momento da história, José começa a rezar como nunca rezou antes na vida. Ele só pensa na mulher. Laurinha, minha paixão! Não posso morrer longe de seus braços. O filhote de Nem corre como louco, metendo a van em tudo quanto é espaço, se distanciando cada vez mais da blitz e da direção do centro da cidade. Numa certa altura, ele para, olha pra trás e diz:

–Cambada, adiantando a passagem.

Uma senhora gorda e pouco prudente pergunta:

–Eu vou ficar no centro. O senhor tá indo pro centro?

Docilmente o motorista responde:

–A senhora vai adiantar a passagem agora e vai descer logo ali naquela vala ­– apontando para um canal sujo – se encher mais o meu saco.

Todos os passageiros começam a contar suas moedas e pagam o rapazinho que está em pé. Sem perder muito tempo, ele abre a porta da van e todo mundo desce ali mesmo num matagal no meio do nada.
Aproximadamente 12 horas depois desse episódio traumático da van, José chora ao lado do seu mais novo amigo, Severino:

–Rapaz, que história essa sua, hein!
–Pois é!
–Fica assim, não! O povo sempre diz: o que não tem remédio, remediado está! Homem de Deus, chora não! E agora?
–Não sei. Meu Deus! Minha mulher!
–Vou fazer o seguinte: vou pegar um banquinho, você senta nele. Aí, eu termino de limpar a calçada, fecho o bar e te levo pra casa.

Depois de lavar a calçada e terminar de passar pano no balcão, Severino desce as portas de seu estabelecimento. Carregando José, vai ouvindo o relato da noite do seu cliente mais chorão da semana:

–Depois da gente andar quase uns trinta minutos, conseguimos chegar num ponto de ônibus. Só passava condução muito cheia. Os motoristas nem paravam.
–E aí, como que você saiu de lá?
–Esperei, esperei, esperei, até que passou um ônibus não tão cheio. Quase três horas em pé pra chegar no centro.
–Jesus!
–Aí, eu andei, andei até o local e não tinha mais ninguém lá. Vazio, vazio, vazio.
–Cuidado!

José quase tropeça numa caixa largada no meio da rua. Severino o segura firme para ele não cair. Nessa hora, José se emociona todo. E começa a soluçar novamente. Severino fica sem entender nada.

–Chora, não! Começa de novo, não!
–Severino?
–Diga.
–É que eu tô emocionaaaaaado. Você é meu amigo. Você é meu amigo de verdade. Está aqui me carregando. O João é um canalha.
–Mas afinal, homem, termina essa história.

José anda até o pé de uma escadaria. Eles estão no Rio Comprido e já são quase cinco horas da manhã. Severino senta ao seu lado.

–Eu vi um garçom limpando uma mesa bem grande. Aí, eu fui falar com ele. Perguntei do pessoal e o rapaz disse que o grupo tinha acabado de pagar a conta. A maior parte tinha ido embora e a pequena parte tinha ido para a Boate dos prazeres.
–Boate dos prazeres, hein?! Essa num conheço.
–Aí, eu pensei: João, safado como ele, deve ta lá na tal Boate. Laurinha, me mata se souber.
–Você foi?
–O João era meu amigo desde o tempo do colégio. Nós estudamos no colégio de padres lá de Niterói.
–Ave, Maria!
–Pois é! Eu fui. Tava preocupado de alguém me ver e contar pra minha mulher.
–Mas se ela foi no bar, podia ter ido lá.
–Laurinha, nunca. Ela é mulher direita.
–Ué. Agora num entendi. Tinha alguém lá?
–Tinha, tinha sim. Uns cinco malandros da velha turma, bebendo, babando nas moças.
–Ô, delícia! Gostosas, hein?!
–Deixa eu contar a história, Severino.
–Vou interromper mais não.
–O João não tava lá. Eu peguei uma cerveja e comecei a beber com o povo. Tava precisando.
–Um pouco, mas agora, já bebeu muito, né? Só lá no Bar, oito cachaçinhas.
–Severino, você é meu amigo ou vai ficar regulando o quanto que eu bebo?
–Calma! Continua a história.
–Depois de um tempinho, eu saí da Boate e fui andando em direção ao ponto de ônibus. Tava demorando para vir uma condução que passasse perto da minha casa. Finalmente, passou um ônibus que me deixava a cinco quadras de casa. Peguei.

Nessa hora do relato, os olhos de José se enchem de água. Ele começa a chorar novamente compulsivamente. Severino que é um homem de negócios, tem hora para acordar. Não pode passar o restinho de noite na rua tendo que abrir o bar em poucas horas. Mas também não quer deixar o novo amigo largado na sarjeta. Ele propõe um acerto:

–José, escute-me bem, homem. Ou você termina logo essa história sem nem mais um pio de choro ou eu vou ter que te deixar aqui. Aí, você vai ter que dormir na rua. Num posso levar pra casa um homem desse tamanho chorando. Minha mulher e meus filhos vão levar um baita de um susto se forem acordados no meio da noite com esse chororô. O que você me diz?
–Aceito.
–Então, termina de contar.
–Andando pra casa, passei em frente ao prédio de João. Vi que a luz do apartamento tava acesa. Atravessei a rua, comprei umas latinhas de cerveja no posto de gasolina. Eu já tava meio altinho. Achei que não teria problema fazer uma surpresa. Atravessei novamente a rua e quando ia apertar o interfone, escuto chamarem por meu nome:

–José?
–João?
–Ué? Achei que você tivesse em casa. Vi a luz acesa.
–Eu tava. Estou voltando da sua casa.
–Da minha casa?
–É.
–Quê que você foi fazer lá?
–Falar com você.
–Porque? Meu Deus! Aconteceu alguma coisa com a Laurinha? Ela tá bem?
–Calma. É sobre a Laurinha sim. Mas não se preocupe, ela está bem.
–Cadê a minha mulher?
–Ela está aí em cima.
–No seu apartamento?
–É.
–Vocês tão dando uma festinha? Você ia me chamar?
–Não.
–Não?
–José, Laurinha agora vai morar comigo.
–Com você?
–É.
–Como assim? Do que você tá falando?
–Eu fui até sua casa pra contar. Amigo, não sei como te explicar.
–Rapaz, eu to começando a achar a piada boba demais.
–Não é piada. É destino.
–Destino?
–Eu e laurinha há muito tempo sentimos uma coisa muito forte um pelo outro. Mas não sabíamos que era recíproco. E hoje a noite, nós descobrimos. Foi o destino que nos uniu.
–Como é que é? O destino uniu vocês?
–Você teve uma entrevista de trabalho do outro lado da cidade. Ela foi liberada cedo do banco. O pessoal da confeitaria se enrolou, eu tive que buscar o bolo. Isso foi bem na hora que laurinha saía do banco. Entendeu? O universo conspirou para que nós ficássemos sozinhos. Esse encontro foi o melhor presente de aniversário que eu poderia ganhar.
–Ou isso é uma piada de mal gosto ou...
–Não é piada. Nós conversamos.
–E aí já resolveram ficar juntos depois de cinco minutos de conversa?
–Nós passamos a noite toda conversando. Eu não fui comemorar no bar, disse pros rapazes que não tava me sentindo bem.
–Eu não acredito. Você é meu amigo de infância. 
–Eu sei. Mas o que posso dizer?

Severino está que não se agüenta. Quer saber se o amigo meteu a mão na cara do safado que pegou sua mulher. Mas tem medo de ouvir a resposta e ter que agüentar mais cinco minutos de choro ininterrupto. Mas também pensa que se o cabra for frouxo do jeito que está parecendo ser, num vai passar uma noite na sua casa. Ele vai acabar querendo passar a semana inteira chorando o chifre. Então, sem dó interrompe o relato:

–Rapaz, achei que você fosse homem sério.
–Como assim?
–Não acredito numa palavra. História mais sem pé, nem cabeça.
–É verdade.
–É, não. Seu amigo desde os tempos de moleque roubou sua mulher numa noite de conversa? E disse que era obra do destino? E você acreditou?
–Severino, fala assim, não.
–Num levo frouxo pra casa que isso não é bom exemplo pros meus filhos, não.
–Severino?!
–Se quiser, aparece mais tarde no bar pra gente tomar umas cachaçinhas.

Foi assim que, em menos de uma semana, o destino mostrou a José o que era capaz de fazer. Naquela noite, ele que passara a semana sonhando acordado a nova vida, iria dormir na sarjeta. Isso se o chifre não atrapalhasse o seu sono. 

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