quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Com Fusão


Eu gosto de voz, de pele, 
de toque, de sopro.

Eu gosto de carne, de sangue, de alma.

Eu gosto de ouvir a vida no suspirar da alma bonita. 



...

Queria andar pelas ruas,
beirar a areia da praia e ver você.
E queria que no cruzar dos nossos olhos nos enxergássemos para além disso tudo.
Queria que nos enxergássemos para além do óbvio massante que é ver.
Eu queria sair para passear.

E queria me deitar com você.
Dormir o cansaço da dor que nos castigou.
Queria acordar renovada.
Com o doce gosto de quero mais na boca.
Com o desejo de viver pulsando em cada veia do meu corpo.
Uma pena você não estar por essas bandas de cá da nossa língua!

...

Acordo e penso em você.
Acordo e está tudo misturado.
Quero achar o seu corpo na minha cama.
Eu me mexo de um lado para o outro.
Não é hora de levantar.
Sentir o peso das suas pernas por cima das minhas.
Sentir o calor do teu corpo envolto ao meu.

Quero acordar com beijos.
E quero passar a manhã de domingo com carícias.
Quero rir desse jeito envergonhado.
Quero soprar a nuca.
Beijar o pescoço.
Tocar os seus lábios com os meus.

Quero dar bom dia.
E me esconder entre seus braços.
E me achar nos seus olhos.
Eu só consigo pensar em como você é doce.

sábado, 26 de novembro de 2011

Mordendo a Cereja


Aos meus amigos, meus amores

É muito bom alcançar um patamar de maturidade onde expor fraquezas não é um levante revolucionário para mascarar uma resposta infantil as divergências corriqueiras da vida.
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É muito bom alcançar um patamar de maturidade onde expor fraquezas não é um grito desesperado por sobrevivência e nem é artifício de chantagem para aplacar a tirania da solidão imposta.
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É muito bom alcançar um patamar de maturidade onde expor fraquezas não procura colo, abraços, beijos, culpados, carrascos, rompimentos, discussões.
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É muito bom alcançar um patamar de maturidade onde expor fraquezas não é o vomitar do emaranhado complexo e muitas vezes doloroso do envolvimento humano.
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É muito bom alcançar um patamar de maturidade onde expor fraquezas é simplesmente sinônimo de tomada de consciência ou até mesmo de superação.


Nada melhor do que a constatação de que se está em um determinado trecho da trajetória do herói da maior aventura de todas, a nossa.
 
Nada de fato é melhor mesmo do que morder a cereja vermelha da vida. 

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A Caixinha que você fez para mim


Texto criado durante a Oficina "Histórias Reais”, realizada pelo Sesc e ministrada por Janaína Leite. A Caixinha, musa inspiradora, pertence a Thaís Vaz. 


Lembro do dia que nos encontramos pela primeira vez. Não me refiro ao dia que nos conhecemos. Falo de quando nos conectamos. Era primavera e o pátio da faculdade estava lindo. O sol, as flores, o banco onde nos sentamos, tudo está aqui dentro desta caixa. Você pegou o folder do seminário e transformou numa espécie de porta jóias para que eu guardasse os presentes mais delicados que você ainda viria a me dar. Eu tenho a caixa comigo. E não me importo dela estar vazia. Guardei o instante aqui dentro; o seu sorriso, o brilho dos seus olhos, o meu contentamento, a nossa alegria. Está tudo aqui.


Desfiz os Nós


Era a primeira vez que ele escrevia um bilhete.
Vitória que adorava escrever bilhetes. 
Lucas, muso. Vitória, autora de Poemetos Neoconcretos Eróticos. 
Ele nunca confessou, mas adorava encontrar no bolso da calça, do casaco, da mochila, um papelzinho colorido com uma pitada de cheiro para mais tarde.
Mas também tinha medo.
Medo, que por um descuido, um bilhete que era seu, só seu, fosse parar na alma de um desconhecido. Ele tinha ciúmes.
Lembrar dos bilhetes, lembrar do medo, lembrar de Vitória.
Pegou um papel colorido na gaveta, uma caneta robusta e escreveu recado sincero:
  
Tirei a roupa. Despi-me completamente.
Desfiz os nós das amarras. Pulei.
O vento toca meu rosto, está quase suave.
A vida, neste instante, me faz um carinho bom
como se fosse meu primeiro grande amor.
Pude me dar conta que devo muito a você.
Não se preocupe, eu guardo bem as palavras.

Aproveite bastante o seu aniversário!


Um grande beijo,


L.

Agora teria que descobrir em que bolso colocar o papel.
Vitória não pendura mais seu casaco no hall da casa.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Laurinha, Meu Destino!



–Alô, José?
–Sim. É ele.
–Oi, rapaz, aqui é João!
–João, meu amigo, quanto tempo! O que conta de novo?
–Por aqui, sem grandes novidades. Quer dizer, meu aniversário tá chegando.
–Opa, notícia boa! E vamos comemorar quando?
–Estou marcando um choppinho na sexta com o pessoal da metralha lá no Arco do Teles. Assim, o povo sai do escritório e vai pro abraço!
–Rapaz, que coisa boa! Mas acho que não vou, não.
–Mas o que quê há? Vai me dizer que Laurinha agora deu pra controlar os seus chopps?!
–Imagina! João, eu tenho a mulher que todo homem pediu a Deus. Não me regula em nada. Eu é que tenho uma entrevista de trabalho do outro lado da cidade. Sexta, eu nem passo no escritório.
–Eu não sabia que você estava procurando emprego.
–Eu não estou. Acontece que aquela agência vive me mandando anúncio de vagas com o meu perfil.
– José, porque você não avisou que já arranjou emprego, homem?
–Pois é! Eu ia avisar. Mas aí Laurinha...
–Você não está satisfeito lá no escritório? Não me falou nada. Eu podia ajudar. A firma que eu estou agora é excelente.
–Pois é, mas eu estou satisfeito. O pessoal é bacana. O salário é bom! O serviço é tranqüilo. É que Laurinha tem essa mania...
–Que mania?
–Ela diz que nós devemos sempre estar de portas abertas para as oportunidades. O destino não trabalha sozinho.
–Sentido faz.
–Já é a terceira entrevista de emprego que me chamam do lado de lá da cidade. Tudo empresa grande. Dessa vez, vou fazer entrevista numa multinacional.
–Não me diga?
–Pois é! E digo mais, tenho um amigo que trabalha numa construtora e já me falou que eles estão com mais de cinco empreendimentos praquelas bandas. É só eu ligar que consigo um apartamento com um belo desconto. Depois disso tudo, eu pensei: a mulher tem razão, destino!
–Rapaz, por tudo o que você está falando, acho que é coisa de destino mesmo. Olha que eu não sou de acreditar nessas coisas, não. Mas e o chefe? Vai faltar na sexta?
– E não é que o Geraldo me deu folga?! Acho que peguei o homem de bom humor.
–Deve ter sido. Porque ele não costuma afrouxar com ninguém. Quer dizer, no meu tempo, só afrouxava com quem usava saia e rebolava, né?
–Acho que sim.
–Conversa está muito boa, mas eu tenho que desligar. Depois você me conta como foi lá. Boa sorte.
–Obrigada. Olha, vou avisar Laurinha. Se ela puder, tenho certeza que irá adorar comemorar o seu aniversário.
–Maravilha!
–Abraço, meu amigo.
–Abraço.

Na tão esperada sexta-feira, enquanto Laurinha arruma sua bolsa para sair para trabalhar, José, confortavelmente sentado a mesa da cozinha, lê o jornal. O marido diz:

–Amor, não esquece que hoje tem aniversário do João.
–Eu sei. Você já falou umas três vezes!
–Você vai?
–Vou sim. Faz tempo que não vejo o povo. Naquele churrasco de fim de ano, eu estava visitando minha mãe...
–Maravilha! Manda um abraço pros rapazes. E um beijo nas moças.
–Mando os abraços. Os beijos, não vou mandar não.
–Mulher ciumenta!
–Eu cuido do que é meu. Boa entrevista!
–Vem cá, eu preciso de um beijinho!
–Para! Assim eu me atraso. Você sabe como é o pessoal do banco...
–Até mais.
–Até. Boa sorte!

José sai de casa com bastante antecedência. A distância entre seu atual apartamento e a empresa que fará entrevista é grande e o trânsito costuma ser bem intenso nas tardes de sexta-feira. Ele chega com uma boa folga. Aproveita para conhecer as instalações e conversar um pouco com o pessoal que trabalha lá. Vinte minutos depois do horário combinado, é chamado para entrar na sala. Sai em menos de dez, sentindo não ter causado boa impressão. Segue rumo ao ponto de ônibus e pega uma van em direção a cidade. Com sorte, ainda consegue tomar um choppinho com o pessoal.
Mas a tal van é dessas ilegais. Vendo um congestionamento causado por uma blitz, o motorista não quer nem saber, sobe no meio fio e atravessa para a outra pista quase causando um acidente. Os passageiros ficam nervosos e começam a resmungar. Umas duas mulheres começam a ensaiar um barraco, quando o filhote de Nem berra de volta:

–Todo mundo de bico calado nessa porra! Vai sobrar chumbo.

            Nesse momento da história, José começa a rezar como nunca rezou antes na vida. Ele só pensa na mulher. Laurinha, minha paixão! Não posso morrer longe de seus braços. O filhote de Nem corre como louco, metendo a van em tudo quanto é espaço, se distanciando cada vez mais da blitz e da direção do centro da cidade. Numa certa altura, ele para, olha pra trás e diz:

–Cambada, adiantando a passagem.

Uma senhora gorda e pouco prudente pergunta:

–Eu vou ficar no centro. O senhor tá indo pro centro?

Docilmente o motorista responde:

–A senhora vai adiantar a passagem agora e vai descer logo ali naquela vala ­– apontando para um canal sujo – se encher mais o meu saco.

Todos os passageiros começam a contar suas moedas e pagam o rapazinho que está em pé. Sem perder muito tempo, ele abre a porta da van e todo mundo desce ali mesmo num matagal no meio do nada.
Aproximadamente 12 horas depois desse episódio traumático da van, José chora ao lado do seu mais novo amigo, Severino:

–Rapaz, que história essa sua, hein!
–Pois é!
–Fica assim, não! O povo sempre diz: o que não tem remédio, remediado está! Homem de Deus, chora não! E agora?
–Não sei. Meu Deus! Minha mulher!
–Vou fazer o seguinte: vou pegar um banquinho, você senta nele. Aí, eu termino de limpar a calçada, fecho o bar e te levo pra casa.

Depois de lavar a calçada e terminar de passar pano no balcão, Severino desce as portas de seu estabelecimento. Carregando José, vai ouvindo o relato da noite do seu cliente mais chorão da semana:

–Depois da gente andar quase uns trinta minutos, conseguimos chegar num ponto de ônibus. Só passava condução muito cheia. Os motoristas nem paravam.
–E aí, como que você saiu de lá?
–Esperei, esperei, esperei, até que passou um ônibus não tão cheio. Quase três horas em pé pra chegar no centro.
–Jesus!
–Aí, eu andei, andei até o local e não tinha mais ninguém lá. Vazio, vazio, vazio.
–Cuidado!

José quase tropeça numa caixa largada no meio da rua. Severino o segura firme para ele não cair. Nessa hora, José se emociona todo. E começa a soluçar novamente. Severino fica sem entender nada.

–Chora, não! Começa de novo, não!
–Severino?
–Diga.
–É que eu tô emocionaaaaaado. Você é meu amigo. Você é meu amigo de verdade. Está aqui me carregando. O João é um canalha.
–Mas afinal, homem, termina essa história.

José anda até o pé de uma escadaria. Eles estão no Rio Comprido e já são quase cinco horas da manhã. Severino senta ao seu lado.

–Eu vi um garçom limpando uma mesa bem grande. Aí, eu fui falar com ele. Perguntei do pessoal e o rapaz disse que o grupo tinha acabado de pagar a conta. A maior parte tinha ido embora e a pequena parte tinha ido para a Boate dos prazeres.
–Boate dos prazeres, hein?! Essa num conheço.
–Aí, eu pensei: João, safado como ele, deve ta lá na tal Boate. Laurinha, me mata se souber.
–Você foi?
–O João era meu amigo desde o tempo do colégio. Nós estudamos no colégio de padres lá de Niterói.
–Ave, Maria!
–Pois é! Eu fui. Tava preocupado de alguém me ver e contar pra minha mulher.
–Mas se ela foi no bar, podia ter ido lá.
–Laurinha, nunca. Ela é mulher direita.
–Ué. Agora num entendi. Tinha alguém lá?
–Tinha, tinha sim. Uns cinco malandros da velha turma, bebendo, babando nas moças.
–Ô, delícia! Gostosas, hein?!
–Deixa eu contar a história, Severino.
–Vou interromper mais não.
–O João não tava lá. Eu peguei uma cerveja e comecei a beber com o povo. Tava precisando.
–Um pouco, mas agora, já bebeu muito, né? Só lá no Bar, oito cachaçinhas.
–Severino, você é meu amigo ou vai ficar regulando o quanto que eu bebo?
–Calma! Continua a história.
–Depois de um tempinho, eu saí da Boate e fui andando em direção ao ponto de ônibus. Tava demorando para vir uma condução que passasse perto da minha casa. Finalmente, passou um ônibus que me deixava a cinco quadras de casa. Peguei.

Nessa hora do relato, os olhos de José se enchem de água. Ele começa a chorar novamente compulsivamente. Severino que é um homem de negócios, tem hora para acordar. Não pode passar o restinho de noite na rua tendo que abrir o bar em poucas horas. Mas também não quer deixar o novo amigo largado na sarjeta. Ele propõe um acerto:

–José, escute-me bem, homem. Ou você termina logo essa história sem nem mais um pio de choro ou eu vou ter que te deixar aqui. Aí, você vai ter que dormir na rua. Num posso levar pra casa um homem desse tamanho chorando. Minha mulher e meus filhos vão levar um baita de um susto se forem acordados no meio da noite com esse chororô. O que você me diz?
–Aceito.
–Então, termina de contar.
–Andando pra casa, passei em frente ao prédio de João. Vi que a luz do apartamento tava acesa. Atravessei a rua, comprei umas latinhas de cerveja no posto de gasolina. Eu já tava meio altinho. Achei que não teria problema fazer uma surpresa. Atravessei novamente a rua e quando ia apertar o interfone, escuto chamarem por meu nome:

–José?
–João?
–Ué? Achei que você tivesse em casa. Vi a luz acesa.
–Eu tava. Estou voltando da sua casa.
–Da minha casa?
–É.
–Quê que você foi fazer lá?
–Falar com você.
–Porque? Meu Deus! Aconteceu alguma coisa com a Laurinha? Ela tá bem?
–Calma. É sobre a Laurinha sim. Mas não se preocupe, ela está bem.
–Cadê a minha mulher?
–Ela está aí em cima.
–No seu apartamento?
–É.
–Vocês tão dando uma festinha? Você ia me chamar?
–Não.
–Não?
–José, Laurinha agora vai morar comigo.
–Com você?
–É.
–Como assim? Do que você tá falando?
–Eu fui até sua casa pra contar. Amigo, não sei como te explicar.
–Rapaz, eu to começando a achar a piada boba demais.
–Não é piada. É destino.
–Destino?
–Eu e laurinha há muito tempo sentimos uma coisa muito forte um pelo outro. Mas não sabíamos que era recíproco. E hoje a noite, nós descobrimos. Foi o destino que nos uniu.
–Como é que é? O destino uniu vocês?
–Você teve uma entrevista de trabalho do outro lado da cidade. Ela foi liberada cedo do banco. O pessoal da confeitaria se enrolou, eu tive que buscar o bolo. Isso foi bem na hora que laurinha saía do banco. Entendeu? O universo conspirou para que nós ficássemos sozinhos. Esse encontro foi o melhor presente de aniversário que eu poderia ganhar.
–Ou isso é uma piada de mal gosto ou...
–Não é piada. Nós conversamos.
–E aí já resolveram ficar juntos depois de cinco minutos de conversa?
–Nós passamos a noite toda conversando. Eu não fui comemorar no bar, disse pros rapazes que não tava me sentindo bem.
–Eu não acredito. Você é meu amigo de infância. 
–Eu sei. Mas o que posso dizer?

Severino está que não se agüenta. Quer saber se o amigo meteu a mão na cara do safado que pegou sua mulher. Mas tem medo de ouvir a resposta e ter que agüentar mais cinco minutos de choro ininterrupto. Mas também pensa que se o cabra for frouxo do jeito que está parecendo ser, num vai passar uma noite na sua casa. Ele vai acabar querendo passar a semana inteira chorando o chifre. Então, sem dó interrompe o relato:

–Rapaz, achei que você fosse homem sério.
–Como assim?
–Não acredito numa palavra. História mais sem pé, nem cabeça.
–É verdade.
–É, não. Seu amigo desde os tempos de moleque roubou sua mulher numa noite de conversa? E disse que era obra do destino? E você acreditou?
–Severino, fala assim, não.
–Num levo frouxo pra casa que isso não é bom exemplo pros meus filhos, não.
–Severino?!
–Se quiser, aparece mais tarde no bar pra gente tomar umas cachaçinhas.

Foi assim que, em menos de uma semana, o destino mostrou a José o que era capaz de fazer. Naquela noite, ele que passara a semana sonhando acordado a nova vida, iria dormir na sarjeta. Isso se o chifre não atrapalhasse o seu sono. 

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Amor ou o Podre

Já havia alguns anos que Roberto gostaria de receber notícias de seu filho. Não era uma idéia recorrente. E nas raras vezes que se permitiu encontrar com o passado se deparara com a distância descomunal que existia. Era quase como lembrar de um ente falecido. Um sorriso, um olhar, um breu escuro, uma doce e delicada dor de curto pulsar. Se cobrasse da memória mais imagens ou mais gestos era atingido por uma náusea. O estômago embrulhava-se todo. Sentia um asco repulsivo que o obrigava a sair pela casa abrindo portas e janelas de modo que o ar que entrasse pudesse varrer qualquer resquício de podridão.
Escovava os dentes, assistia ao jornal, ocupava os olhos com sangue, com morte, com dor. Nada lhe desagradava mais que o nojo causado por seu único descendente. Era assim que reagira nas primeiras vezes que se punha a pensar no que o outro estaria fazendo se por ventura estivesse vivo. Dessa vez não.
Depois de anos de ressentimento, de indiferença, o tempo mudara sua forma de pensar ou ele mudara sua forma de estar. Não existia borracha que apagasse a decepção. Já fazia parte dele. Não cortara o desgosto, a vergonha, como não cortaria uma perna ou um braço. Roberto pegou o telefone e discou o número sem pensar. Nem os segundos que antecedem o bip da chamada abriram caminho para o simples e lógico pensamento de que talvez, treze anos depois, aquele número pudesse estar desligado ou simplesmente pertencer a outra pessoa. O telefone tocou quatro vezes, um homem atendeu.

–Alô? 
–Alô?
­­–André?
–O que você quer?
–Você sabe quem é?
–E teria como não saber?
–Você sabe que dia é hoje?
–Quatorze de Agosto. Domingo. Dia dos pais. Você não tem calendário?
–Eu sei que dia é hoje. Queria saber se você lembrava.
–Aniversário de missa de sétimo dia. Teria como esquecer a data? 

Barulho de risadas. As crianças correm pela casa, gritam, chamam pelos pais. André tampa o bucal do aparelho e diz que já vai e que elas brinquem com a mãe enquanto ele fala ao telefone. Nunca ocorrera a Roberto que o filho pudesse ter se tornado pai e marido. Muito menos lhe ocorrera que o filho pudesse ter encontrado paz. Então, sentiu que a sua ligação viera em hora mais que oportuna.

–Ela tirou a própria vida e ainda consegui que tivesse um enterro cristão. Consegui um padre que rezasse as missas.
–O que você quer?
–Eu quero saber como você consegue se suportar depois de tudo.
–A culpa não foi minha.
–Então, você acha que eu fui o...
–Não acho que você tenha sido o culpado também.
–Foi a história que você contou, André.
–A culpa a matou. Não ter percebido.
–Você não se arrepende? Em nenhum momento? Nunca?
–Eu não matei minha mãe.
–Você ao menos a poupou dos detalhes?
–Então, é isso que o preocupa? Quer saber se ela morreu ciente da sordidez?
–Ainda um moleque! O que eu não entendo é por que você apareceu na missa se nem ao enterro teve a dignidade de ir. Você queria me matar de vergonha?

Por um momento, aquela noite veio à tona. A imagem da porta da igreja aberta, o cheiro da chuva, o menino magro e frágil que ele era, os pingos de água que escorriam por todo seu corpo, a poça de água que ia se formando no chão da igreja, o ódio, a raiva que sentia. Ele não via a ninguém. Fixou seu olhar no Jesus crucificado em cima do altar. O padre gesticulava e da sua boca saía um ruído abafado e quente. Tudo girava ao seu redor. Somente quando Roberto fora chamado a prestar homenagem a esposa, André se deu conta de onde estava. Despertou da transe e logo fora envolto por um estranho sentimento de hostilidade que o impulsionara a sair correndo. Correu até não sentir mais suas pernas.

–A última coisa que passou pela minha cabeça era se você teria ou não vergonha de mim. Ali seria a última vez que o veria. –um longo respiro– Logo ali, num lugar sagrado, em frente a todas aquelas pessoas... Irônico, não?
–Você quer me dizer alguma coisa, André? Por que se quiser, agora é a hora.
–Você nunca foi capaz de olhar para além do seu próprio umbigo.
–Ora, ora. O garotinho agora virou homem. Fale. Diga o que está há tanto tempo te corroendo. Ou só quer me desafiar?
–Longe de mim querer alguma coisa com você. Eu não fui ao enterro da minha mãe. Mas, Roberto, eu juro que se arrependimento matasse, eu iria ao seu sem nem piscar os olhos. E se precisasse, eu cavaria a sua cova com as minhas próprias mãos. E depois do caixão, a pá de terra, eu lançaria flores ao buraco que guardaria o seu corpo podre e imundo.
–Filho da puta ingrato! Você teve o meu melhor, eu te dei tudo! Todo o meu amor e, ainda assim, tem coragem de falar comigo dessa maneira.
–Você nunca soube o que era amar. Isso que você chama de amor me dá nojo.
–Você diz isso agora. –Um breve silêncio invadiu a linha telefônica.
–O que eu poderia dizer? Sei o que posso dizer agora e digo: se arrependimento matasse, eu não teria de volta a infância que você roubou, mas eu teria o prazer de sepultar um monstro.

E ali, eles desatam o nó que poderia ainda uni-los. Não há mais nada a ser dito. Essa fora a última conversa de suas vidas. André anda até os fundos da casa, onde suas duas meninas brincam com a mãe. Ele é tomado por uma serenidade nunca sentida antes, que só é interrompida pelos pedidos carinhosos e insistentes de suas filhas. Ele entra na brincadeira. Corre pelo jardim e gargalha e gira e se perde e se encontra numa alegria infantil. Sente o menino liberto da angústia.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Das Complexidades de Ser Humano


O que vamos aprendendo...
As dúvidas que levantamos a medida que percorremos o(s) caminho(s)
As respostas que não satisfazem a ninguém...
E outras cositas mais...


(parte 1)



O que distingue o cinismo saudável, maduro, que nos protege de nós mesmos, dos outros e das eventuais e cotidianas tragédias da vida, daquele cinismo cínico, covarde, que nos afasta de tudo e de todos e das eventuais e cotidianas belezas da vida????



O que distingue o cinismo que nos salva daquele que nos aniquila????



(parte 2)



Não é porque se para de dar a alguém algo que ele não quer mais que isso resolverá os problemas que existem entre vocês.



Falar sobre os problemas que existem entre vocês pode também não ser solução.



Já parou para pensar que talvez não exista solução para qualquer coisa que exista entre vocês????



(parte 3)



Mocinha saltitante: Finalmente entendi que nada sei. Digo entendi por que saber eu já sabia. Mas pra saber mesmo, eu precisava sentir. E agora eu sinto que nada sei, nunca soube e nem nunca saberei. E isso é tão libertador que eu ando pelas ruas da cidade, de um lado pro outro, esboçando um sorriso extremamente babaca na cara. E sabe como eu sei que o sorriso é de babaca?



Fim de tarde. Duas amigas andam pelas ruas de Ipanema.



Rua, carros, pessoas.



Mocinha saltitante: Nossa, amiga! A vida é tão...

Amiga da MS: Tão???

Mocinha saltitante: Tão linda!



Continuam caminhando e param numa lanchonete para comer lasanha.



Mocinha saltitante: Nossa! Essa é a melhor lasanha ever!

Amiga da MS: É...



Saem da lanchonete e caminham em direção ao Oi Futuro.

Céu nublado, a ameaça de chuva é visível...



Mocinha saltitante: Nossa! O dia está incrível!

Amiga da MS: Mais ou menos, o céu tá nublado.

Mocinha saltitante: Eu sei. Mas é um nublado lindo!



Entram no espaço cultural. Depois de uns 20 minutos, saem. A amiga visivelmente irritada e a moçinha com um sorriso enorme no rosto.



Na porta do Oi Futuro:



Mocinha saltitante: Como a vida é...

Amiga da MS (irritada): Incrível?

Mocinha saltitante (rindo): é...

Amiga da MS: Só eu ouvir mais uma única vez que a vida é linda, que o dia está incrível, que as cores do sol, que as sombras dos prédios, que as belezas do cotidiano... e etc e tal que você vai levar uma guardachuvada na cabeça. Ok?

Mocinha saltitante (rindo): OK. Mas posso falar só mais uma coisa?

Amiga da MS: A última!

Mocinha saltitante: Eu tava morrendo de saudade! Adoro esse seu jeitinho mau humorado!



 (parte 4)


Abraçar a dor. Falar da dor. 
Falar com a dor. 
Rir da dor. Rir com dor.

Esquizofrenias poéticas ou uma forma de superar a si mesmo????
 

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Enquanto é feira



O diálogo não parecia possível. O ouvido ainda não era de mercador. Ela trocava bananas por maças na feira. E ainda sim, achava de bom tom, esclarecer as mágoas. Então, tirou um lápis da bolsa e num guardanapo esboçou o que deveria ser uma carta de trégua.

Quero colocar um aviso de ocupado na minha porta. 
Talvez um que diga algo como: Fechado para balanço ou Aqui, em breve, uma nova pessoa. Mas o balanço já foi feito e eu já sou uma nova pessoa. O mais apropriado, então, seria dizer algo como: peça para entrar. Eu já sei as coisas que não quero. E dentre elas, ser invadida por você ou por outro alguém. Eu sei que na ânsia de me ver bem, você acaba nos atropelando. Não é maldade, só um jeito perverso de lidar com a vida.  Um jeito doloroso que nos separou há tanto tempo atrás que nem importa quando. Eu mudei muito. E sei que mudanças te assustam. Você não precisa me salvar. Eu já me salvei. Tire o medo do olhar, a angústia da palavra, o receio do gesto, a roupa do corpo. Ou não tire nada. Se quiser algo para acreditar, acredite quando digo que estou bem. Bem de um jeito que nunca estive antes! 


Agradeço tudo e muito mais.

            Repousou o lápis na mesa bamba, encarou as fileiras formadas por palavras no papel. Era isso que queria dizer? Já não sabia. Dobrou o guardanapo e cuidadosamente o guardou dentro da bolsa dos ovos. Lembrou-se de que a espera costuma ser sábia mesmo quando a vida insiste em ser ligeira. Aproveitou a sombra das árvores do lado de lá da rua e correu para casa. O almoço ainda não havia sido feito.

sábado, 15 de outubro de 2011

Fluxograma do Encantado

#riodejaneirofeelings


Amigos.Filme.Sorrisos.Espaços.
Rua.Copa.Oficina.Teatro.Cenários.
Peça.Estréia.Figurino.Ironia.Diálogos.
Consumo.Tendências.NeIn.Mercado.

Feminino.Masculino.Engraçado.

Permanente.Colorido.Risos.Abraços.
Calçada.Praia.Gritos.Alegria.Orgasmos.
Dia.Sono.Fandangos.Ovomaltine.Feriado.

Ônibus.Barco.Cama.Desabo.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Lembranças

Eu nunca quis a sua liberdade.
Eu nunca quis os seus pensamentos.
Eu nunca quis ter mais do que um grande amor.
Eu nunca quis realmente me casar com você.

      Eu queria seu zelo, seu carinho, seu silêncio.
                 Eu queria um bocado seu só pra mim.
                       Eu queria mesmo você dona de si.
  
O que eu realmente queria era você pro mundo.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Cotidiano Pulsante (Parte 5)

musicamalditafeelings!

-Meu vizinho tem um gosto musical péssimo!
-Lá vem você.
-Lá venho eu?
-Você e seus preconceitos...
-Eu nem falei nada.
- Ele tava ouvindo o quê? Pagode?
-Não.
-Axé? Funk?
Não. Não.
-Brega? Sertanejo?
- Também Não.
-Já sei, Heavy metal?
-Não.
-Putz grila! Agora você implica com o quê?
-Minha querida, entenda: um ser humano que desperta as 5 e meia da manhã com qualquer coisa no volume máximo não entende nada de música. Simplesmente a essa hora, nada, em absoluto, presta.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O Cheiro do Menino Homem


O respeito do pai não viera com o avançar da idade. Os números indicavam que Paolo já era um adulto. Mas para seu progenitor, em dias bem humorados, não passava de um menino. O filho, no fundo, percebia o quase desprezo sentido. Por dentro fora, negava culpa. Por dentro dentro, naquele lugar onde ficam guardadas as mais remotas lembranças e as grandes angústias, preferia nem saber o que achava do assunto. Menino homem - corpo de homem, coração de menino - levava a vida com grandes preocupações.
Os aborrecimentos do rapaz não eram os que o pai esperava que ele, aos vinte e três anos, tivesse. Arturo, quarto filho de uma família de imigrantes, trabalhou bastante para que nada faltasse aos seus dois herdeiros, Paolo e Agata. E como a maioria dos seus contemporâneos passara mais tempo longe do que perto. E quando perto, muito longe. Pai e filho pertencem a gerações tão absurdamente diferentes que seria até curioso não haver abismo entre os dois. Arturo nem sabe que história era essa de adolescência tardia. Não seria um prolongar desnecessário da fase mais besta que o homem tem?
Faltavam ainda sete anos para que o filho chegasse aos trinta. Para o pai, os anos corriam como meses e as escolhas de Paolo não o levariam a lugar algum. Depois de terminar a faculdade, concluída com muito custo e desgosto, o rapaz, ao invés de procurar um emprego ou prestar concurso, como o pai gostaria, voltou a estudar. Arturo achava que essa história de que o filho não se realizaria como advogado - que sua vocação residia em outro universo - era a mais pura sem-vergonhice. Mal sabia ele que seu filho era só mais um de tantos nessa posição ridícula de recomeço após vivenciar grande descontentamento. E talvez se não fosse pelo fato de ser seu filho, aplaudiria um jovem rapaz que prefere ter coragem ao invés de pura resignação.
O italiano não era duro por que tivera uma vida duríssima. Era o homem caçula de uma família de imigrantes. O único do sexo masculino que nascera e vingara em solo brasileiro. Seu pai, homem um pouco mais instruído que a maioria dos seus conterrâneos residentes no país, conquistara uma posição privilegiada na sociedade. Teve trabalho e também sorte, bons investimentos e bons sócios. Criou os filhos com casa, comida e boa educação. Não ostentava luxo, mas não deixava nada faltar. Arturo e os irmãos ajudavam nos negócios da família, enquanto que as irmãs ficavam com a mãe cuidando da casa.
Arturo adorava falar para Paolo, desde que este se entendia por gente, o quanto já havia feito quando tinha sua idade. Aos vinte e três, já era formado engenheiro. E fora incumbido de cuidar de uma grande obra do outro lado do país. Num lugar que mais parecia terra de ninguém. Sob seu comando, estavam mais de quinhentos homens, era o que dizia. Não contava suas histórias com o brilho no olhar de quem gosta de reviver memórias. Acreditava que de uma forma ou de outra, arrancaria da cabeça do filho as idéias desmioladas.
A verdade é que Arturo nunca conseguiu mesmo ser pai de Paolo. Que um homem de sua origem e idade exigisse sempre as melhores notas e conduta exemplar, natural. Mas não era isso, ele competia com o filho como se fosse irmão um pouquinho mais velho, queixoso de ter perdido afeto dos adultos para o que acabara de chegar. Aquele irmão que sempre precisa ser melhor em tudo. O filho nunca tivera uma conquista, na qual o pai não fizera questão de sombrear com as suas. E quando ele não ofuscava o mérito do menino relatando um mérito próprio, era porque estava tão absorto em si mesmo que sua indiferença cuidava de esmagar um pouquinho mais a auto estima do bambino.
            Sempre criticado, acusado de fazer péssimas escolhas, mesmo quando estas se mostravam acertadas, não seria de estranhar que o menino homem tivesse dificuldades em se livrar da condição infantil que ainda o ligara ao pai. Buscava aprovação. Mesmo discordando de tanta coisa, mesmo enxergando o mundo de forma tão diferente, sempre consultava o pai. A admiração que sentia por seu progenitor, por sua carreira e a forma generosa como tratava as pessoas, era grande demais para entender que enquanto fosse complacente, só teria desprezo disfarçado de uma descabida comiseração.
            A mãe de Paolo nunca contradizia o marido, nem na frente, nem por trás. Eles não eram daqueles típicos casais de antigamente, cujo papel do homem era ser vilão e o da mulher, ser boazinha. Também era rígida, mas definitivamente muito mais afetuosa que o marido. Sempre reconhecia as conquistas do filho e gostava de lembrá-lo o quão orgulhosa ficava com suas realizações. Mas dentro fora, isso pouco efeito tinha. Se de um lado a mãe o colocava para cima, do outro, venerava o pai. Então, se o pai era rei absoluto, tudo o que ela dizia mais parecia ser conversa de mãe. Uma forma encontrada por ela para aumentar a confiança do filho e não elogio merecido. Dentro dentro, filho pensava então que a mãe o tivesse menos ainda, por isso ela, vez outra, o enaltecia.
            Durante muitos anos, Paolo, sem entender direito, tinha pela mãe esse ressentimento de quem é tratado como vítima, não sendo, ou sendo, não querendo ser. Faltava-lhe com o devido respeito. Não era propriamente mal criado. Aprendera com o pai a ter aquele olhar indiferente, menosprezando os seus dizeres. Paolo ouvia sempre, mas descartava os conselhos da mãe da mesma forma que Arturo descartava as opiniões do filho.  
            O menino homem soprava velas e a medida que os anos passavam, mais difícil era frear as angústias que moravam dentro dentro dele. Aos poucos, os conflitos acobertados das mais falsas ilusões iam se transpondo para fora. Paolo não tinha bem o controle do que saía. E o que era ruim demais e por isso justificava o esforço de trancar a sete chaves dentro de si, ia se transpondo para o mundo ao seu redor. Os muitos segredos guardados cheiravam mal, alguns a naftalina, outros, a cachorro molhado.
E por causa do cheiro que as mágoas tinham, a casa tornou-se insuportável. As salas, os quartos, a varanda, o jardim, a cozinha, não havia lugar que não estivesse contaminado com o odor. No começo, Paolo tentou com muita força guardar de volta aquilo tudo, não conseguiu. Era mais forte do que ele. E a vergonha era tanta que só fazia o cheiro piorar. No início, ninguém entendia o que estava acontecendo. A mãe que era muito zelosa começara a espalhar pelos cômodos mais vasos de flores que o habitual. Tendo percebido que seu jardim não daria conta e que ela não teria vasos suficiente, passara a utilizar outras táticas. Comprou aromatizantes para todos os cômodos, o que não adiantou. Arturo que já não tinha lá um belo olfato começou a se incomodar. Talvez menos com o cheiro e mais com a inquietação da esposa. Já havia procurado explicações para o odor, explorando a casa por dentro e por fora na tentativa de achar o local de onde exalasse com mais força. E nada.
Não demorou para os desentendimentos começarem a acompanhar toda e qualquer reunião familiar. A mãe era acusada de louca, pois resolvera esquentar canela e sair correndo com a frigideira quente na mão benzendo os aposentos. A filha passara a costurar obsessivamente saquinhos de cravos da índia, os quais ia colocando dentro de tudo quanto era vão, buraco, esquina que encontrava. Fato que também a enquadrava no perfil de louca segundo o pai. Este era tido como inoperante pela filha e relapso pela esposa. O caos estava armado. Ninguém mais suportava o cheiro e o convívio familiar.
E o menino homem, mesmo com muita vergonha, já não sabia se era do cheiro ou de não ter contado a verdade antes, se viu obrigado a enfrentar os seus entes queridos. Fosse como fosse, ele contaria a verdade. Afinal, a culpa pelo caos era maior do que o medo de não achar a cura. No fundo, ele tinha a esperança de que seus familiares entendessem a sua situação. Afinal, além de se incomodar com o cheiro tanto quanto os outros, tinha vergonha de ser o responsável. E enquanto todos buscavam uma resposta pela casa, ele buscava uma resposta nele mesmo. E enquanto não conseguia parar de exalar e nem de suavizar o odor, ficava o menor tempo possível dentro da casa, o que também o fazia sofrer.
A esperança move o mundo. Não, a necessidade move o mundo. Paolo esperou o término do jantar. Não demorou, afinal o odor não favorecia o apetite. Ele então se levantou e pediu a atenção de todos. Enquanto procurava as palavras certas, o telefone começou a tocar. Sua mãe levantou e foi atender. Do outro lado, era o primo Antelmo, neto do irmão do pai de Arturo. Ligava da Itália para saber quando Paolo chegaria. A mãe não entendeu. E então, o primo perguntou de novo, dessa vez, complementando a pergunta com a informação de que Paolo conseguira a bolsa de mestrado em história da arte na mesma universidade que ele, Antelmo, lecionava. Foi um alvoroço. Paolo estava tão preocupado com o odor que esquecera por completo os trâmites da vida. A mãe e a irmã ficaram radiantes. O pai, sempre com aquela pontadinha de amargura, solta pelo menos esse mestrado é na Europa, lá que se fez arte de verdade. Acabou que com a confusão, o odor ficou em segundo plano. E depois, Paolo achou melhor poupar a família do desgosto. Ele iria embora e os problemas estariam resolvidos.
Na Europa, ele tratou de viver sua vida. Mantinha o menor contato possível com o Brasil. Tinha medo. E nem gostava de pensar nisso. Passados quatro anos desde que deixara o conforto de casa para aventurar-se pelo mundo, Paolo começou a sentir muita falta da família. O tempo longe o transformara. Depois que terminou o mestrado, passou dois anos viajando pela Europa. Fez estágios em museus, conheceu pessoas, se apaixonou, se iludiu, se apaixonou de novo. E quando viu que era hora, entrou no doutorado. Estava tão bem e confiante que resolveu convidar a irmã para passar uma temporada com ele. Agata não pensou duas vezes, recebido o convite, fez a mala e foi.
Nos primeiros dias, os irmãos saudosos fizeram uma festa danada. Aproveitaram para passear pela região, visitar os pontos turísticos e os locais favoritos de Paolo. Também experimentaram as melhores cantinas. E numa noite dessas, depois de beberem a segunda garrafa de vinho, a irmã começou a contar como o pai mudara nos últimos anos. Como criticava tudo o que ela fazia. E que estava tão amargo que era impossível ficar perto dele.  Paolo queria perguntar do odor desde que viu a irmã no aeroporto. Talvez ali seria a hora de tocar no assunto. E o cheiro da casa? Perguntou antes que pudesse se arrepender. A casa sempre teve um cheiro esquisito, né, Paolo?! Na sua época, quer dizer, antes de você ir embora, era de cachorro molhado. Agora é de enxofre. Definitivamente ele não esperava por aquela resposta. Como assim a casa sempre tivera um cheiro esquisito? Ela ri, percebe ser a única que sabe o segredo. Quando a gente era criança tinha cheiro de tuti fruti, não lembra? Também teve cheiro de romã. Depois, teve cheiro de manga. Um monte de cheiro. Ele fica estarrecido. Nunca pensara sobre isso. E era verdade. A casa sempre exalou um odor gostoso. Quer dizer, exceto naquela vez que vinha dele. Então, a irmã caçula, como se invadisse seus pensamentos, o traz de volta para o instante, ao mesmo tempo que arranca o peso do mundo de seus ombros como se a culpa fosse tão leve quanto a pena de um beija-flor. Seu bobo, a nossa casa sempre cheira ao sentimento dos seus moradores. 

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Homem Gigante



-Mãe, Olha!
-Jimmy, não aponta. Meu Deus do céu, é o Homem Gigante!
- Homem Gigante?!
-Oi, garoto, tudo bem?
-Nossa!
-Qual seu nome?
-Jimmy. O que você fez pra crescer tanto?
-Jimmy! Desculpe, Homem Gigante, coisa de criança.
-Tudo bem, senhora, eu não me importo. Escute, garoto, você também pode crescer muito. Talvez um dia possa ser até maior e mais forte do que eu.
-Uau! O que devo fazer?
-Bem...
-Já sei! Fazer toda a minha lição de casa. E também arrumar minha cama. Comer tudo que a mamãe colocar no prato. Aí eu vou crescer, não vou?
-Oh, Jimmy! Crescer não é como esperar pelo natal. Você terá que vencer a dor!
-A dor?! 
-É a dor que faz crescer. Escute-me bem, Jimmy: os anos irão passar, você vai se iludir, vai se machucar, vai se arrepender, talvez até se perder pelo caminho. Mas quando a dor vier, Jimmy, ela vai te esmagar como se você fosse um inseto.
-Ahn?!
-Garoto, vai chegar um momento em que o mundo parecerá insuportável. Você vai estar chão. E quando achar que não tem mais para onde ir, nem quem recorrer, lembre-se de mim. Pense na minha altura. Pense em todas as coisas que eu posso alcançar. Tudo o que eu posso fazer. Certamente, os primeiros centímetros despontarão.
-Homem Gigante?
-Diga, Jimmy.
-Não será mais fácil eu terminar a escola, me tornar um cientista, virar um PhD e numa noite qualquer trabalhando no laboratório acontecer um acidente e eu acabar contaminado pela minha própria experiência?

Homem Gigante: Se a dor faz crescer, sou o maior homem do mundo!

[Química Básica:

Nada se perde,
Tudo se transforma.]

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Mangueira do Tempo



Sentado ao pé de uma mangueira, aproveitando a sombra no meio da tarde, seu Benedito conversa com o vento: “Eu hoje sou quem a vida me tornou. E ela que é muito esperta vai me moldando com a substância daquilo que fui. Quando eu olho para trás, não vejo passado. Vejo lembranças. Filamentos que já não são mais os mesmos.” Ele vai recostando o corpo no tronco. Os olhos parecem pesados, luta para que as pálpebras não se fechem. O esqueleto que é todo gasto procura mais conforto. De súbito, seu Benedito arregala bem os olhos, mais vivo do que nunca, prossegue: “O binóculo sempre reflete o espírito exaltado do presente. O futuro é danado, só existe mesmo no sossego. Senão bota as dores de antes noutras circunstâncias.” Como quem vai adentrando nos próprios pensamentos, aquele senhor de corpo frágil parece se perder no instante. E novamente, desperta do sono não dormido, enche o pulmão de ar e diz ao vento: “Então, eu miro bem pro passado, eu encaro o antigo. Mas para não correr perigo, eu escolho o momento. Só me atrevo, só me arrisco, quando meu peito transborda contento.” Ele olha para o lado e balança a cabeça como quem concorda com o que acabara de ouvir. “É, meu amigo, só assim não fico preso nas armadilhas dos fantasmas.”